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Tomada do Palácio das
Tulherias.Jean
Duplessis-Bertaux (1818). Palácio de Versailles |
O ódio a todas as desigualdades levou uma minoria
revolucionária
ao terror sanguinário da Revolução Francesa.
O mesmo processo revolucionário prossegue hoje
em todo o mundo,
e o conhecimento dessa revolução paradigmática
ajuda-nos
a combatê-lo com eficácia.
Renato William Murta de Vasconcelos
Depois
da revolução protestante (1517), uma segunda grande explosão do processo
revolucionário,[1] preparada com longa antecedência, desencadeou a partir
de 1789 em França uma série de transformações políticas, sociais e religiosas
que inauguraram a era contemporânea. No conjunto das suas vertentes moderadas e
radicais, difundiu ideias republicanas pelo mundo inteiro, derrubou monarquias
milenares na Europa e abriu o caminho para a Revolução Comunista de 1917.
Os
elementos mais radicais da Revolução Francesa estavam concentrados na facção
jacobina. Segundo a utopia que os guiava, havia sobre os franceses dois jugos
insuportáveis: o da superstição, representada pela Religião Católica; e o da
tirania, constituída pelo governo monárquico. Com fervor «humanitário»,
levantaram-se os «amigos do povo» para dissipar as trevas da «superstição»
eclesiástica e quebrar os grilhões da «tirania» real. A intenção aparente
seria, no final do processo, devolver o poder ao povo, tornando-o seu único
detentor. Se algum ingénuo imagina que era essa a intenção, o mínimo que esse
mesmo ingénuo pode constatar é que o objectivo real era
a evidente tirania que se implantou em todo o mundo.
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Catedral de Estrasburgo convertida em «Templo da
razão» durante a Revolução Francesa
(Revolutions-Almanach de 1795. Göttingen
1794, p. 327). |
A
Revolução Francesa, cheia do espírito igualitário que não admite qualquer forma
de desigualdade, e encharcada de sensualidade que recusa qualquer freio às
paixões, levantou-se contra o Ancien Régime (Antigo Regime),
uma ordem social hierárquica e austera em muitos dos seus aspectos. Deixando
atrás de si uma montanha de ruínas e um mar de sangue,[2] os
revolucionários moderados e radicais derrubaram instituições e costumes
milenares, que haviam feito da antiga França o país de todas as perfeições,
objecto da admiração do mundo inteiro.
Minoria
revolucionária impôs a ideologia anticristã
No Ancien
Régime brilhavam ainda, e com muito fulgor, os melhores traços da
cultura e do espírito francês: um esplendor na vida social, que bem se exprimia
pela tríplice locução verbal «savoir dire, savoir plaire, savoir faire» (saber
dizer, saber agradar, saber fazer). Bem vivos e dinâmicos eram também os
princípios básicos da civilização cristã — a tradição, a família e a
propriedade — dando consistência e elevação ao corpo social. Mas a inveja
revolucionária via nessa consistência e nessa elevação uma forma de exploração
das classes modestas. Para libertá-las, a solução seria derrubar o altar e o
trono: Ni Dieu, ni maître (Nem Deus, nem senhor), segundo a
formulação que servirá de base às agitações de Maio de 1968 da Sorbonne.
A
democracia instaurada na sequência da Revolução Francesa — o governo do povo
pelo povo — contaminou praticamente todas as nações. Mas o resultado evidente é
que as transformou em tremendas tiranias das minorias (auto-qualificadas como
esclarecidas, avançadas e progressistas) sobre a maioria (pejorativamente
rotulada de obtusa, retrógrada e conservadora). E não precisamos ir longe para
coleccionar exemplos. Já foi assim na própria fonte dessa revolução, que
Augustin Cochin[3] descreve como um movimento realizado por cerca de 200 mil
agentes para mudar radicalmente o modo de vida de 25 milhões de franceses. Os
revolucionários constituíam 0,8% da população francesa, mas impuseram a sua
ideologia anticristã à imensa maioria dos seus compatriotas.
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Inauguração dos Estados Gerais – Auguste Couder
(1789–1873).
Musée
National du Château et des Trianons, Versailles. |
O
rei reina, mas não governa
Após
décadas de preparação tendencial e ideológica, a Revolução Francesa entrou em
1789 na sua fase mais conhecida: a dos factos. Vários factores — um deles, a
participação na guerra da independência dos Estados Unidos — haviam contribuído
para que o Estado francês se encontrasse deficitário. A Assembleia dos Notáveis
do Reino, convocada em 1787, mostrara-se incapaz de oferecer uma proposta
adequada para solucionar a crise financeira. O rei Luís XVI convocou então os
Estados Gerais, compostos de representantes do clero, da nobreza e do povo. A
última vez em que estiveram reunidos fora em 1622, no reinado de Luís XIII.
Tinham carácter meramente consultivo, e o Rei nutria a esperança de receber
sugestões idóneas que concorressem para sanear a bancarrota do Estado.
Inaugurados
nos primeiros dias de Maio de 1789, os Estados Gerais adjudicaram para si um
poder que não possuíam, transformando-se logo num corpo único: a Assembleia
Nacional; e semanas depois, em Assembleia Nacional Constituinte, numa clara
usurpação do poder real. Luís XVI não tinha a personalidade de Luís XIV nem a
energia de seu avô Luís XV, e chancelou a redacção de uma Constituição para o
Reino, ao invés de dissolver a Assembleia. Ficava posto de lado o objectivo
primordial da convocação dos Estados Gerais, e caminhava-se para uma mudança na
forma da monarquia francesa: de absoluta para constitucional, onde «o rei
reina, mas não governa». Era um primeiro passo rumo à República.
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Queda da Bastilha e prisão do governador M. de
Launay, 14 de Julho de 1789 – Anónimo. Museu de História da França, Versailles. |
Tomada
da Bastilha, um marco do horror
Começaram
então em Paris os distúrbios e agitações promovidos por hordas de arruaceiros.[4] Em
14 de Julho, há 230 anos, ocorreu a tomada da Bastilha, transformada em símbolo
da antiga ordem que devia desaparecer. Nas semanas subsequentes, hordas de
bandidos percorreram o interior da França, incendiaram castelos, espalharam
medo e terror por toda a parte.
No
dia 5 de Outubro, uma turbamulta composta na sua maioria por mulheres saiu de
Paris rumo a Versailles, aonde chegou ao cair da noite, enlameada, feroz e
armada. Na madrugada seguinte, uma porta aberta na grade do castelo deu-lhes
acesso a Versailles. Os guardas foram barbaramente assassinados, e a própria
Rainha por pouco não foi executada. Num cortejo macabro, cabeças de soldados
foram espetadas em lanças, e a família real foi arrastada para Paris e alojada
no Palácio das Tulherias.
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Chamada das últimas vítimas do terror na prisão
Saint Lazare – Charles L. Müller (1815–1892). Museu da Revolução Francesa,
Vizille (França). |
Beneficiados
pela efervescência geral, os deputados mais radicais tomaram a direcção na
Assembleia. Primeiramente os monarquistas tradicionais foram suplantados pelos
monarquistas constitucionais; estes, por sua vez, foram superados pelos
republicanos moderados quando da promulgação da Constituição. Pari
passu foi mudando a fisionomia da estrutura social: os privilégios do
clero e da nobreza foram abolidos; os bens da Igreja foram nacionalizados; uma
Constituição Civil, cismática e herética, foi imposta ao clero.
Clima
de terror e radicalização rumo à esquerda
A
Assembleia Legislativa sucedeu à Constituinte em 1791. Nela os republicanos
radicais — os girondinos, assim chamados porque provinham na sua maioria da
região de Gironda, cuja cidade principal era Bordeaux — passaram a dar o tom e
exigir a supressão da monarquia.
O
ataque ao Palácio das Tulherias no dia 20 de Junho de 1792 preparou o grande
assalto de 10 de Agosto. Por ordem do Rei, desejoso de evitar derramamento de
sangue, os guardas suíços não reagiram ao ataque de milhares de bandidos, e
foram massacrados juntamente com centenas de nobres fiéis.
Indefesa,
a família real refugiou-se durante três dias no recinto da Assembleia, de onde
foi levada para o Palácio do Templo, pertencente ao Conde de Artois. Luís XVI,
Maria Antonieta, os dois filhos — o Delfim (sete anos)[5] e Mme. Royale
(14 anos)[6] — e Mme. Elisabeth não foram encarcerados no palácio, como
esperavam, mas de início na pequena torre, depois na grande torre adjunta ao
palácio.
Nos
dias 2 e 3 de Setembro, magotes de jacobinos, com a complacência de Danton,
ministro da Justiça, atacaram as prisões e massacraram centenas de nobres
encarcerados desde o dia 10 de Agosto. A matança voltou-se também contra
membros do clero. Só no Convento do Carmo foram mortos dois bispos e mais de
100 sacerdotes. A Princesa de Lamballe, grande amiga de Maria Antonieta, foi
assassinada a golpes de sabres e lanças. Despedaçada cruelmente, o seu coração
foi arrancado do peito e comido, ainda palpitante, por um dos assassinos.
Depois espetaram a sua cabeça na ponta de um chuço e levaram-na, no meio de um
berreiro e com uma farândola infernal, até à janela da prisão do Templo, para
que fosse vista pela Rainha.
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A populaça aprisiona o rei nas Tulherias em 20
de Junho de 1792 |
O
clima de terror dominava Paris, e justamente no dia da eleição para a Convenção
Nacional um elemento psicológico tremendo favoreceu a entrada de grande número
de jacobinos radicais na nova câmara. A Convenção Nacional, sucessora da
Assembleia Legislativa, abriu as suas sessões no dia 21 de Setembro, aboliu a
monarquia e proclamou a república. Foi dirigida nos primeiros meses pelos
girondinos, que assumiram os seus assentos à direita (na Legislativa, estavam
no lado esquerdo). Em meados do ano seguinte, os jacobinos derrubaram e
eliminaram a facção girondina, instalaram-se no poder e inauguraram o assim
chamado período do terror. Era o processo de radicalização rumo à esquerda, por
meio do qual os radicais de ontem se tornaram os moderados.
Condenação
da família real em julgamento ilegal
Deposto
o Rei, o que fazer dele? A ala radical jacobina não pretendia enviá-lo para o
exílio, mas sim matá-lo com a cumplicidade do centrão formado
pelos girondinos. Já no dia 11 de Dezembro, a Convenção dispôs que Luís XVI
fosse separado da sua família. O desfecho do processo — um verdadeiro escárnio
da justiça — é por demais conhecido. Na madrugada de 18 de Janeiro, 361 dos 720
deputados (a metade mais 1) votaram pela condenação à morte, sem apelo
nem sursis. Detalhe horripilante dessa tragédia: o voto decisivo
pela morte do Rei foi do Duque de Orleães, seu primo. Bastava ele abster-se, e
o Rei estaria salvo.[7] Dois dias depois, ao rufar ensurdecedor dos
tambores, a cabeça do Rei rolou no cadafalso, cercado por 15 mil soldados.
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A populaça aprisiona a rainha nas Tulherias em
20 de Junho de 1792 |
Na
prisão do Templo permaneceram juntos, durante alguns meses, Maria Antonieta, os
seus dois filhos e Mme. Elisabeth. Em fins de Setembro, levaram Maria Antonieta
para a prisão da Conciergerie, que era por assim dizer a antecâmara da
guilhotina. Após um julgamento infame e infamante,[8] Maria Antonieta foi
condenada à morte e guilhotinada no dia 16 de Outubro de 1793.
Enclausurados
na torre do Templo, restavam ainda o jovem rei Luís XVII, sua irmã Mme. Royale
e Mme. Elisabeth. No meio a todas as incertezas, esta foi para os filhos do Rei
uma segunda mãe, executada em 10 de Maio do ano seguinte. Por outro lado,
contavam-se vinte anos da morte do seu avô Luís XV.
O
martírio de Luís XVI, Maria Antonieta e Mme. Elisabeth era uma verdadeira «queima
dos navios» para tornar a Revolução Francesa irreversível, mas atraiu sobre a
cabeça dos seus responsáveis imediatos o castigo divino: a máquina
revolucionária começou a devorar os seus filhos. Mal decorreram três semanas da
execução de Maria Antonieta, subiu ao cadafalso no dia 6 de Novembro de 1793 o
regicida Filipe Égalité; em fins de Março de 1794 foi a vez de Hébert,
panfletista obsceno e porta-voz dos sans-culottes. Danton seguiu-lhe
os passos no dia 5 de Abril. E três meses depois, em 10 de Thermidor (28 de
Julho), perderam a cabeça na guilhotina Robespierre, Saint-Just, Dumas e mais
uma vintena de seguidores.
A
queda de Robespierre sinalizou o término do regime do Terror, pois a opinião
pública francesa estava cansada de tantos excessos. Era um retrocesso
necessário para a revolução progredir. Outras fases se sucederam: Directório,
Consulado, Império. A obra revolucionária prosseguiu inexoravelmente sob outras
formas, e continua a avançar. Mas esta já é matéria para outro artigo.
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Notas:
[1]
Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução,
Artpress, São Paulo, 1982, pp. 19-20.
[2]
Joseph de Maistre, no seu livro Considérations sur la France, J. B.
Pelagaud, Lyon, 1880, calcula que a Revolução Francesa ceifou quatro
milhões de vidas humanas, incluindo nesta cifra as vítimas das guerras napoleónicas,
que exportaram para toda a Europa os princípios revolucionários de 1789. Só na
campanha da Rússia morreram quase um milhão de soldados da Grande Armée.
[3]
Augustin Cochin, Les sociétés de pensée et la Démocratie: Études
d´Histoire Révolutionnaire, Plon-Nourrit et Cie.,1921.
[4]
Esses arruaceiros, segundo Goncourt, eram cerca de seis mil indivíduos da pior
espécie, não apenas de Paris, mas provenientes do interior da França e do
estrangeiro. Haverá entre eles holandeses, prussianos, espanhóis e até
americanos.
[5]
Louis-Charles de France (1785-1795) foi o segundo Delfim. Morreu prisioneiro na
Torre do Templo, em condições deploráveis. O primeiro, Louis-Joseph, morreu em Junho
de 1789.
[6]
Mme. Royale, assim era chamada Marie Thérèse Charlotte de Bourbon (1778-1851),
filha primogénita de Luís XVI e Maria Antonieta. Sobreviveu à prisão do Templo,
casou-se com o seu primo o Duque d´Angoulême e não teve descendência.
[7]
Robespierre murmurou espantado, ao ouvir o voto do regicida: «Que
infeliz! Era o único que poderia abster-se, e não ousou fazê-lo!» (G. Lenotre, Les grandes heures de la
Révolution Française, Perrin, Paris, 1962, p. 278).
[8]
Infame sob todos os pontos de vista: da ilegalidade do processo, da competência
dos seus juízes, da inexistência de razões e provas suficientes para a
condenação. Acusaram-na, à falta de melhor, de haver pervertido sexualmente o seu
filho, o Delfim, criança de tenra idade.