sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Quando a pessoa é degradada a objecto de troca
ou de aluguer

P. José Jacinto Ferreira de Farias










Vivemos tempos complexos e hoje especialmente marcados pela crise, que diz respeito directamente aos aspectos mais materiais da nossa vida pessoal e colectiva, as questões da economia, dos mercados, da especulação financeira. Ainda recentemente uma professora universitária brasileira que conheci num Congresso na Roménia em Outubro passado sobre o matrimónio nas grandes religiões monoteístas, e que estava de visita a Portugal, me dizia que os seus familiares que aqui residem vivem muito atribulados e sem esperança, por causa das grandes dificuldades que estão a passar; e muitos brasileiros estão a regressar ao Brasil, considerando que afinal a esperança que tinham depositado nas possibilidades que poderiam encontrar em Portugal foram goradas e por isso tiveram de regressar, agora que a economia brasileira se encontra em pleno florescimento.
Sentimos todos que a crise é global, e as agências de notação financeira como que se divertem neste jogo de altos e de baixos, de classificações, determinando o lugar que cada país está a ocupar, sendo que no nosso caso já estamos quase no lixo. No caso das agências de notação financeira foi-me dito que elas são financiadas pelos próprios países que analisam e classificam. Não percebo muito destas coisas, devo dizer. Mas se assim é e se declaram que Portugal está nesta condição de não poder honrar os seus compromissos, então o que devia fazer era mesmo deixar de lhes pagar.
Mas eu próprio penso que é muito mais grave a crise que estamos a viver; é uma crise de sentido, de valores, é uma crise de humanidade. Parece que se perdeu a noção da dignidade e que tudo se pode comprar ou vender, tudo, mesmo a pessoa, pode ser objecto de troca e de negócio. É o caso entre nós da questão em torno das barrigas de aluguer. Então a mulher já pode vender-se ou alugar-se, em parte ou no todo? Surpreendeu-me até certo ponto, quando soube o resultado do inquérito que foi feito – sabe-se já com que critérios de objectividade – sobre este tema a adolescentes e a estudantes universitárias, a preparar o ambiente para a proposta legislativa sobre este tema, que uma percentagem muito elevada das entrevistadas concordava com este aluguer de barrigas e que estaria mesmo disposta a entrar neste negócio. Além disso, fiquei verdadeiramente admirado com o silêncio (pelo menos não ouvi nada sobre este tema) de quem, em nome do seu patriótico catolicismo, deu a cara pela supressão dos feriados religiosos - uma causa de tal grandeza que justifica um lugar parlamentar!... -, e nada tenha feito ou declarado sobre este tema das barrigas de aluguer, um tema verdadeiramente merecedor, porque fracturante da dignidade da mulher, que é degradada a objecto de troca ou de aluguer, numa época de asfixia do espírito, na qual a crise financeira tudo justifica.
Como é urgente que se recorde o tema da tentação de Adão e de Eva que a Escritura narra, de quererem apoderar-se do fruto da árvore da vida e que por isso mesmo foram expulsos do paraíso, e as portas guardadas por querubins. Este relato bíblico tem uma potencialidade simbólica enorme para os nossos dias. E aquela outra palavra que o Senhor cita respondendo à tentação satânica: nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Ou a palavra de S. Paulo que exorta os cristãos a não profanarem o próprio corpo, porque é o templo do Espírito Santo.
Há limites que não podem ser ultrapassados. Estas medidas fracturantes, fracturam não a sociedade, mas os próprios que as propõem, defendem ou aprovam e sobretudo quem as pratica. É urgente que as nossas consciências meio adormecidas despertem para a nossa responsabilidade e para as contas que havemos de dar não só diante do tribunal da história, mas sobretudo diante do tribunal de Deus, sob cujo juízo nos encontramos.

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