quinta-feira, 29 de dezembro de 2016


«Mariconços» e «paneleirices»


Alberto Gonçalves, Sábado, 27 de Dezembro de 2016

Numa tentativa de explicar a ascensão de Trump, Seth MacFarlane, o criador de Family Guy, disse há tempos que o lado dele, a esquerda, «tornou-se um pouco irracional quando é preciso separar o trivial do profundo». E acrescentou: «Somos incapazes de distinguir as injustiças das coisas que nos ofendem.»

A chatice é que as coisas que os ofendem são imensas, e a sensibilidade aumenta a cada dia. Na América, por exemplo, pode arruinar-se uma pessoa após publicar uma graçola «inconveniente» no Facebook.

MacFarlane lembra o caso de Justine Sacco, a senhora que, durante uma viagem em 2014, deixou na Net piadas escritas em Heathrow sobre o cheiro dos alemães, a dentição dos britânicos e a sida em África. As primeiras ficaram impunes, mas a terceira levou a que, ao aterrar na Cidade do Cabo, a ex-anónima de 30 anos descobrisse que era, mundialmente, o ódio n.º 1 do Twitter. Descobriu também que perdera o emprego, o sossego e, decerto, a possibilidade de uma vida decente.

Portugal ainda não atingiu tamanho grau de desenvolvimento. Porém, vontade não falta. Na semana passada, Ricardo Araújo Pereira resolveu queixar-se dos seus parceiros ideológicos, leia-se os vigilantes atentos ao indivíduo que arrisca falar, mesmo que fora do contexto, em «mariconços» ou «paneleirices». Os vigilantes não perderam tempo a atiçar a fogueira. Nas «redes sociais» e em colunas de opinião, as criaturas do costume e os anónimos que apreciam as criaturas do costume saltaram a atacar a «intolerância» e o «preconceito» do Ricardo.

A fúria só não foi pior porque, afinal, o Ricardo não é conotado com a «direita». E porque, apesar do seu talento, o Ricardo partilha uma característica com os colegas sem talento do humor nacional: nunca, ou quase nunca, belisca de facto as «causas» de estimação da seita. Ao contrário do que berra uma devota do género, a questão não é que aqui não haja a vocação persecutória que se encontra nos EUA. Por via da tradição indígena para a submissão voluntária, o que não há é tantos pretextos para a perseguição.

O que constitui um pretexto ou o que diferencia o admissível do (ai que horror) inadmissível? No entender dos indignados profissionais, o bom senso. E o que é o bom senso? É tudo o que não aflige essas almas delicadas. Insultar cristãos, judeus, brancos, pretos (se representantes da troika), homossexuais (se corridos da festa do Avante!), mulheres (se avessas ao socialismo), aleijados (se ministros alemães) e até cancerosos (se cônjuges de neoliberais) integra o bom, melhor, o óptimo senso. O resto é blasfémia.

Vale que, pelo menos enquanto não se nomear uma comissão para avaliar e punir os «excessos», o castigo dos blasfemos é o gozo da liberdade. E o prazer de rir do dedito acusatório dos Torquemadas de trazer por casa, profissão que parece atrair os maiores idiotas, perdão, retardados, perdão, doentes mentais, perdão, os mais especiais sujeitos que o País tem para oferecer. E tem muitos, embora ninguém os queira.