sábado, 6 de fevereiro de 2016


Eutanásia: uma compaixão falsificada


Pedro Afonso

A legalização da eutanásia abre um caminho perigoso, pois há quem defenda, face aos custos crescentes de saúde, que a medicina deve suspender os tratamentos mais onerosos a doentes idosos e incuráveis

A eutanásia corresponde ao acto de provocar deliberadamente a morte a um doente incurável para que, através deste «acto piedoso», se ponha fim ao seu sofrimento. Numa altura em que a Assembleia da República se prepara para discutir a legalização da eutanásia, justifica-se um debate sobre este tema.

Um dos argumentos utilizados para a legalização da eutanásia é que estas pessoas têm o direito a uma morte digna, o que não passa de um eufemismo maniqueísta, como se a morte daqueles que decidem de forma corajosa enfrentar os inúmeros sofrimentos e provações que lhes acarreta a doença fosse uma morte indigna.

Uma outra ideia errada dos defensores da eutanásia é a de que o nosso corpo é nosso, logo quando esse corpo é acometido de uma doença incurável, a decisão de viver ou morrer também é nossa. Ora, ninguém é o senhor absoluto de si, pois ninguém vive para si mesmo, e quando alguém morre não morre apenas para si mesmo.

Neste debate, os defensores da eutanásia partem de um pressuposto errado: a vida humana não tem sempre o mesmo valor, já que desde que afectada pelo sofrimento associado a uma doença incurável, transforma-se numa vida indigna e prescindível. Curiosamente, esta foi a mesma justificação utilizada pelos nazis para aplicarem o seu programa de eugenismo e eutanásia, designado por Aktion T4, durante o qual os médicos nazis assassinaram milhares de doentes considerados como «incuráveis».


A legalização da eutanásia conduz a um caminho perigoso, pois há quem defenda, perante os custos crescentes de saúde, que a medicina deveria suspender os tratamentos mais onerosos a alguns indivíduos (provavelmente começando-se pelos idosos, doentes incuráveis, etc.), concedendo-lhes uma morte abreviada. Por detrás desta aparente morte misericordiosa, há o risco de surgirem interesses economicistas, pois o Estado vê-se livre destes encargos de saúde.

A depressão tem uma prevalência elevada ao longo da vida. Esta patologia pode ser crónica, causando um sofrimento duradouro para o doente, e nas formas mais graves é por vezes acompanhada por ideação suicida. Se a eutanásia for legalizada, significa que se abre a porta ao suicídio assistido. Afinal porque é que há-de ser diferente uma doença física incurável de uma doença psiquiátrica incurável? Não será o sofrimento psíquico — muitas vezes mais doloroso e insuportável do que o sofrimento físico — um motivo legítimo para se respeitar a vontade do doente ao suicídio assistido? Porque é que este pedido de morte há-de ter menos valor? A eutanásia aplicada às doenças psiquiátricas pode abrir a porta ao suicídio assistido de milhares de indivíduos no nosso país que sofrem de depressão, havendo o risco de uma parte significativa da população se suicidar de forma legal. Mas será que uma pessoa com depressão estará em condições de exprimir a sua vontade de uma forma livre?

Presume-se que os agentes da eutanásia sejam médicos. Mas a condição de ser médico entra em contradição com o acto de cometer uma morte a um doente, ainda que a pedido deste e com o aval legal do Estado. A tradição hipocrática obriga a que o médico esteja sempre do lado da vida, pelo que a um médico não se pode pedir que, conforme o desejo do doente, alterne entre a posição de alguém que tudo fará para que nós possamos continuar a viver, para alguém que afinal nos vai ajudar a morrer. Esta contradição prejudicaria de forma gravíssima a confiança inabalável que se deve depositar nos médicos.


A eutanásia é um mal que contradiz a própria ética médica, porque se opõe ao dever do médico de permanecer ao lado da vida, respeitando-a e procurando preservá-la em todas as condições. A eutanásia trata-se, na verdade, de uma compaixão falsificada. As súplicas dos doentes graves e deprimidos que pedem a morte são na esmagadora maioria dos casos pedidos de ajuda, pedidos de afecto e de consolo. Todos os dias os médicos escutam estas palavras de desespero, e todos os dias respondem com palavras de ânimo e de conforto. Esta é a luta diária daqueles que prestam cuidados de saúde; a luta contra a doença e o sofrimento, preservando a vida. A morte não deve ser abreviada, mas antes humanizada, garantindo-se os cuidados de saúde necessários, nomeadamente o alívio do sofrimento através dos cuidados paliativos.

Felizmente, somos testemunhas em muitos casos de que as suplicas desesperadas de uma morte piedosa se transformam em palavras de agradecimento e de apego à vida. Estou convicto de que muitos dos meus colegas já passaram por isso, e na minha opinião não há maior realização para um médico do que ouvir dos seus doentes estas palavras; não há maior alegria para um médico ou enfermeiro do que presenciar o rosto luminoso agradecido de um doente, depois de termos posto generosamente ao seu serviço a nossa arte, e a nossa sabedoria. Esta é afinal a verdadeira compaixão.





segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016


Uma experiência chamada Portugal


Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 31 de Janeiro de 2016

Se bem percebi, o alegado governo que nos caiu em cima enviou à Comissão Europeia um rascunho do Orçamento do Estado, o qual, segundo quem sabe do assunto, ganharia em ter sido produzido por dois cangurus munidos de uma «folha» de Excel. A CE, horrorizada com tamanho caldo de inépcia, trafulhice, alucinação e certificada desgraça, devolveu o papel acompanhado de uma carta que se esforça por manter a polidez protocolar embora não esconda certa falta de paciência para as artimanhas de burgessos.

O dr. Costa e os serviçais do governo reagiram através da desvalorização da carta, até porque, garantiam eles, as objecções da CE prendem-se com ligeirezas técnicas e, por favor não se engasguem, «não têm relevância política». Em simultâneo, um teórico do «costismo» (o equivalente em sofisticação ao atendedor de chamadas do professor Bambo) acusou a CE de «tentar tramar o governo português». A acreditar nos socialistas, o Conselho Económico e Social, o Conselho das Finanças Públicas, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental, quatro agências de rating, a UEFA e um vizinho meu também aderiram à conspiração.

No que toca aos partidos comunistas que de facto mandam no circo, e que nem com a queda do muro aproveitaram para fugir do hospício, instigam o dr. Costa a enfrentar a «Europa dos interesses» com, engasguem-se à vontade, firmeza. Catarina Martins avisa que a CE «está a assaltar-nos», mas na verdade o arranjinho que a dra. Catarina integra é que o fez em Outubro – e agora julgasse ser igualmente fácil assaltar os contribuintes alemães. Para distinguir o PCP do Bloco, o sr. Jerónimo repete a lengalenga do Bloco.

De seguida, o dr. Costa, cuja fluência na própria língua de facto levanta interrogações acerca da comunicação com estrangeiros, voltou à carga com redobrado delírio, mais a consideração de que as previsões do governo são «conservadoras e realistas» e a denúncia de que Passos Coelho – o «senhor primeiro-ministro», nas palavras do alegado – enganou Bruxelas.

Entretanto, há infelizes que com as melhores intenções vão à televisão comentar a «situação» como se a «situação» merecesse comentários. É, evidentemente, uma trabalheira inglória: nada que saia das infantis cabeças que nos governam (força de expressão) exibe um pingo de racionalidade e pode ser levado a sério. Séria só a desgraça em que concorrem para nos deixar, de que eles escaparão com típica impunidade. E que nós pagaremos com típica resignação e, desconfio, sofrimento inédito. Portugal é hoje uma experiência, à escala real, para averiguar quanto tempo um país resiste nas mãos de transtornados. Eis uma previsão conservadora e realista: pouco.