Pe. Gerald E. Murray, Actualidade Religiosa, 24 de Maio de 2017
A realidade interessa? Ela é a referência necessária e decisiva para descobrir o que é e o que não é, o que é verdade e o que é falso? Ou será a realidade sujeita a revisão com base nas nossas preferências, desejos ou outros factores? São questões como estas que se nos colocam quando vemos comentários como aqueles feitos pelo cardeal Francesco Coccopalmerio sobre a validade das ordens anglicanas. Segundo Christopher Lamb, do «The Tablet», Coccopalmerio caracterizou o ensinamento da Igreja sobre as ordens anglicanas da seguinte maneira: «Temos tido, e temos ainda, uma compreensão muito rígida sobre a validade e a invalidade: Isto é válido, aquilo não é. Mas deve-se poder dizer: ‘Isto é válido num certo contexto, aquilo é válido noutro’.»
O cardeal especula sobre as implicações doutrinais de gestos papais de respeito e de amizade no passado, dizendo: «O que significa o facto de o Papa Paulo VI ter dado um cálice ao arcebispo de Cantuária? Se era para celebrar a Ceia do Senhor, a Eucaristia, então era para ser feito de forma válida, não?» E continua: «Isto é ainda mais significativo do que a cruz peitoral, porque o cálice não é usado apenas para beber, mas para celebrar a Eucaristia. Com estes gestos a Igreja católica está já a intuir, a reconhecer uma realidade».
Estas declarações surgem num novo livro, cujo título não é indicado por Lamb, que inclui o conteúdo de um encontro do Grupo de Conversação de Malines, que teve lugar perto de Roma em Abril deste ano. A Rádio Vaticano cobriu o encontro, tomando nota da participação do cardeal Coccopalmerio. A reportagem da Rádio Vaticano inclui comentários feitos pelo padre Tony Currer, do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Sobre as ordens anglicanas ele diz: «Penso que é verdade que não utilizamos termos como ‘nulas’» pois «claramente não é isso que dizem os gestos, a generosidade e a simpatia que temos visto repetidamente».
Validade é sinónimo de realidade quando se fala de sacramentos. A Igreja ensina claramente o que é necessário para a celebração válida – isto é, verdadeira e real – dos sacramentos. Ao invocar linguagem pejorativa como «compreensão rígida» sobre validade e invalidade, Coccopalmerio reduz o entendimento da Igreja sobre o que conta como um sacramento válido à expressão de uma atitude psicologicamente doentia, radicada na ignorância e no medo irracional.
A questão da validade é simples: A Igreja considera que uma ordenação anglicana é uma administração válida do sacramento da Ordem? A resposta é não, tal como foi determinado com a autoridade do Papa Leão XIII na sua encíclica Apostolicae Curae. A ordenação anglicana não transforma um homem num sacerdote católico. Essa determinação é objectiva e feita com base num estudo razoável e cuidadoso da história, da doutrina e da prática tanto da Igreja Católica como da Comunhão Anglicana.
Paulo VI e o arcebispo de Cantuária |
A Igreja ensina que esta ordenação não é uma ordenação católica válida. O homem ordenado numa cerimónia anglicana não recebe o sacramento da Ordem. O sacramento da Ordem não é administrado. (Deixo de parte aqui a questão de anglicanos ordenados por bispos que receberam sagração episcopal das mãos de bispos veterocatólicos ou ortodoxos).
Mas aparentemente Coccopalmerio e Currer resistem a esta verdade. O cardeal afirma que o cálice que o Papa ofereceu ao arcebispo de Cantuária significa que o Papa Paulo VI considerava que o Serviço de Comunhão Anglicano era uma celebração válida da Missa porque «era suposto ser feito de forma válida». Mas o Papa Paulo VI nunca disse aquilo que Coccopalmerio conclui. Um gesto não equivale a um pronunciamento papal.
O padre Currer diz que «nós já não usamos termos como ‘nulo’». Se por «nós» se refere à Igreja católica, está enganado. O pronunciamento do Papa Leão XIII não foi rejeitado por qualquer dos seus sucessores. É evidente que o padre Currer e outros não gostarem do facto de as ordens anglicanas terem sido consideradas nulas. Mas esta insatisfação de Currer com o exercício do magistério papal não significa que a Igreja tenha deixado de defender a invalidade das ordens anglicanas.
Coccopalmerio procura dispensar a verdade objectiva do que constitui validade sacramental na Igreja católica, tornando-a variável de acordo com um «contexto». Não estamos perante relativismo, puro e simples? O cardeal não afirma que os critérios para determinar a validade ou a invalidade da administração da Ordem foram mal aplicados por Leão XIII quando este examinou as ordens anglicanas. (Talvez aborde a questão noutro lado). Limita-se a dizer que estes critérios não se devem aplicar porque são rígidos. A conclusão do Papa Leão XIII de que as ordens anglicanas são inválidas é criticada como sendo rígida quando a pessoa não gosta dessa verdade em particular. O que para uns é rigidez, para outros é solidez. A Igreja está a ser teimosa ou firme nesta questão? Diria que ambos. É isso que a verdade exige, independentemente do contexto. Se ela tiver cometido um enorme erro neste ponto, que mais devemos lançar borda fora?
No seu ensaio «O Destronar da Verdade», Dietrich von Hildebrand escreveu: «O desrespeito pela verdade – quando não se trata de uma tese teorética, mas de uma atitude vivida – claramente destrói toda a moralidade, mesmo a razoabilidade e a vida comunitária. Todas as normas objectivas são dissolvidas por esta atitude de indiferença para com a verdade; como é destruída também a possibilidade de resolver de forma objectiva qualquer discussão ou controvérsia. Também se torna impossível haver paz entre pessoas ou entre nações. A própria base da vida humana real é subvertida».
Corremos grande risco ao dispensar a verdade.