José Miguel Pinto dos Santos
Será que já não há ratos em Portugal? Ou será que
estão tão gordos que já nem parecem ratos?
Os contactos entre portugueses e japoneses ao longo
dos séculos apresentam dos aspectos mais coloridos nas histórias das duas
nações.
É verdade que houve longos períodos em branco, de
ignorância mútua. Mas também existiram períodos a verde, cheios de esperanças e
expectativas. Viveram-se épocas douradas e cor-de-rosa, de comércio e cultura.
Sofreram-se episódios tingidos a vermelho, de escaramuças armadas e martírios.
E passaram-se ocorrências negras. Ou roxas, se o roxo for a cor da vergonha.
Em 1903, Murakami Naojiro (1868-1966) descobriu no
Lyceu Passos Manuel, em Lisboa, uma Doctrina Christan. Este livro,
raríssimo, tinha sido impresso em Amakusa em 1592. Culturalmente era um volume
valiosíssimo: era a primeira tradução existente de uma obra numa língua
europeia para o japonês, um dos primeiros livros escritos em japonês com letras
latinas e também um dos primeiros a ser impresso, no Japão, com tipos móveis.
Este volume tinha sido oferecido por Alessandro Valignano (1539-1606), um dos
responsáveis pela missão jesuíta no Extremo Oriente, a D. Theotónio de Bragança
(1530-1602), que por sua vez o tinha doado a um convento de cartuxos. Os bons
frades zelaram pela sua integridade durante dois séculos. O eles não saberem
japonês terá contribuído para o seu parco uso e boa conservação. A seguir à
revolução liberal, no séc. XIX, o Estado expropriou-lhes tudo o que tinham
e palmou-lhes o livro, que passou para o Lyceu Nacional, criado por decreto do
ministro Passos Manuel (1801-1862) em 1836.
Alertado pela descoberta de Murakami, Jordão de
Freitas (1866-1950) inspeccionou a obra uns tempos depois. Em 1910 o Lyceu foi
transferido para as belas e imponentes instalações actuais, e inaugurado com
muita pompa e circunstância a 9 de Janeiro de 1911. Não era caso para menos,
atendendo a ser a primeira grande obra pública feita pelo novo regime. Quando,
passados alguns meses, Freitas visita as novas instalações e pede para ver o
livro, foi-lhe laconicamente dito por um funcionário cinzento: «Já não o temos,
os ratos comeram-no».
Esta Doctrina Christan reapareceu
em 1913, no catálogo de um livreiro madrileno. Foi vendida a um americano
anónimo e, em 1915, é oferecida para venda no catálogo de Martinus Nijhoff,
famoso livreiro na Haia. Em 1917 foi comprada pelo barão Iwasaki Hisaya
(1865-1955), um magnata ligado ao grupo Mitsubishi, que o passou ao Toyo Bunko,
uma biblioteca, por ele fundada, em Tóquio – onde ainda hoje se encontra, em
bom estado de conservação.
Será que já não há ratos em
Portugal? Ou será que estão tão gordos que já nem parecem ratos?