1.2 – É útil conhecer previamente o candidato
Pena é que o candidato não tenha colocado explícito na sua excelsa obra política todo o seu pensamento íntimo, como sejam aquelas questões elementares com que o confrontei directamente na Secção A de Lisboa do PPD-PSD, sem lhe dar margem para fuga «à político», em Maio de 2008, quando se candidatou à Presidência do Partido. Estas questões, por definirem bem o sentido de Estado e o nível moral e patriótico de cada um, importa referir logo à cabeça como apresentação do candidato. É que, quando se lê um livro, temos vantagem em conhecer previamente o que vai na cabeça do autor e onde ele quer chegar. Eis as questões.
Quatro questões de civilização.
i) Questões da vida (aborto, eutanásia). Pronunciou-se a favor, tal e qual um bloquista.
ii) «Casamentos» entre invertidos. Pronunciou-se a favor. E mais. Acrescentou um cruel dilema que dilacerava a sua alma: será que os «casais homossexuais devem poder adoptar crianças?» (sic).
iii) Pornografia nos meios de comunicação. Não o incomoda absolutamente nada, faz parte da «liberdade» e quem se sente incomodado, como o interlocutor, é «conservador» – pelo que o próprio «conservador», achando demasiado ligeira a carga semântica do adjectivo utilizado pelo juiz «progressista», o corrigiu para reaccionário.
iv) Legalização das drogas. Pronunciou-se a favor, o que significa a capitulação do Estado perante o crime e a destruição física, psíquica e moral da juventude.
Duas questões de identidade nacional.
i) Acordo ortográfico. Pronunciou-se a favor deste desordenamento linguístico e crime contra a língua e a cultura portuguesas.
ii) Regionalização. Pronunciou-se a favor desse retalhar da Nação e multiplicação de tachos.
E assim, depois deste cartão de visita do progressista, evoluído e cheio de sentido de Estado candidato, temos uma ideia de como tenciona tomar conta de Portugal, de nós todos. Assim sabemos com quem estamos a lidar, a que Estado-retalhos e sociedade-bordel ele quer chegar, mesmo antes de lermos umas patacoadas erigidas em primária sabedoria política.
1.3 – O que vamos ver do livro do candidato
Torna-se impossível abordar aqui todas as questões suscitadas na excelsa obra política do candidato. Pelo número de questões que suscita, seria preciso outro livro ou outros livros... Vou passar ao lado de muitas dessas questões e apenas olhar às maiores. Também a linguagem deste comentário será telegráfica para não o alongar demasiadamente.
A excelsa obra política, Mudar, apresenta-se em uma introdução e três partes.
Na introdução, o candidato a tomar conta de nós pretende dar um ar de competência técnica, tentando apagar a imagem de oco e postiço que dele a generalidade das pessoas tem. Então preenche a introdução com «ciência» económica formulada na estereotipada linguagem da «globalização» – assim uma panorâmica lá do alto... Uma espécie de Cavaquinho da geração Magalhães.
A primeira parte da excelsa obra (Da política) é assim uma espécie de memórias precoces, particularidades pessoais sem qualquer relevância. Se essas particularidades servissem para ilustrar ou mesmo enfeitar a apresentação de um conteúdo, tudo bem, aceitava-se. Mas não. Tudo é gratuito. Apenas servem (?) para enfeitar o autor. No meio dessa palha, surgem entretanto frases que têm subjacentes conceitos que devem ser referidos. São essas ideias, assim como as apresentadas na segunda (Do essencial, hoje) e terceira partes (Das escolhas políticas) que vamos apreciar.
2 – A IDEOLOGIA POLÍTICA DO CANDIDATO
O candidato não domina lá muito a política (não me refiro à politiquice) nem aquilo que a deve sustentar, a filosofia (não me refiro à bazófia). Nitidamente, Ângelo Correia, estudioso de filosofia, desleixou-se na formação do seu pupilo (a não ser que a culpa seja do próprio, por incapacidade de aprendizagem). O candidato utiliza indevidamente conceitos que não domina. Mistura-os formando uma amálgama confusa e produzindo uma «ideologia» política ecléctica, incoerente e politicamente correcta.
2.1 – Uma pilha de palavras ocas do vocabulário da classe política
O esforço de erudição é enorme. Mas a obra é pequena. Por não possuir pensamento claro sobre a política e as questões políticas, o candidato escreve ao sabor da pena. Recorre àqueles lugares comuns, de La Palisse, ao palavreado que soa bem, aquele a que estamos habituados na boca dos políticos do sistema. E, afinal, analisando as suas propostas, percebe-se que se contradiz e pretende fazer exactamente o contrário dos cândidos princípios que enumera.
Fala ele de reduzir o peso do Estado, a carga fiscal, a burocracia, o défice do Estado, da redução e racionalização de despesa pública, etc. Aquela retórica comum nos políticos do sistema, por saberem que esses evidentes males incomodam muitos portugueses e, assim falando, angariam votos. Mas a que corresponderá de verdade, na prática, esta frequente linguagem de flexibilidade administrativa e poupança? A verdade vem com as suas propostas para a administração do Estado e a regionalização, que nos conduziriam precisamente ao contrário: mais carga fiscal, mais burocratas, mais classe política, mais peso do Estado. Tudo «racionalmente»...
2.2 – Ausência de conceitos, de filosofia política e doutrina política
Pretendendo dar um ar erudito ao discurso, o candidato recorre frequentemente a um vocabulário aparentemente intelectual mas que exprime conceitos que não domina. É o caso de pragmatismo, activismo, voluntarismo, igualitarismo, e vários outros, que utiliza em sentido positivo quando, à luz de qualquer dicionário (nem precisa de ser um dicionário filosófico), exprimem práticas erradas na vida, incluindo na acção política.
Na verdade, não fica mal a ninguém não conhecer estas coisas «esotéricas». Mas também não fica mal, especialmente a um candidato, ir aprender os conceitos traduzidos por esses palavrões se pretende brilhar com a sua ribalta.
Para demonstrar erudição histórica (e, para não nos alongarmos, vamos passar ao lado dessas fabulosas considerações historicistas), o candidato recua mesmo à idade média. E na história recente nem falta o desembarque do homem em foguetão na superfície lunar. Bonito e poético. O antropoteísta António Gedeão não cantou melhor.
Também o candidato dá o destaque de um capítulo àquilo a que chama «A personalidade em política» (p. 41-59). Espremido, nada deita. Apenas esvazia a política do seu conteúdo doutrinal e prático, sacrificada à «personalidade» do actor. É o vazio doutrinal que acontece quando se atribui demasiada importância às características psicológicas dos actores, ao chamado carisma.
Depois de várias páginas de conversa nula, o candidato começa finalmente a produzir «teoria política» brilhante. Escreve ele:
«Pensar Portugal, hoje, não é um problema de avaliação de matriz esquerda-direita, não é um problema de conservadorismo versus progressismo, de liberalismo contra socialismo, de monarquia à república. É, antes, um problema que tem que ver com a origem daquela cultura política centralista que se impôs a todos os regimes, políticos, económicos e sociais.» (p. 20)
E assim, não possuindo conceitos claros de filosofia política, nem de política, embarca facilmente naquela moda tecnocratista – aliás já falida e caída em desuso – do «fim das ideologias». Não ver diferença – mais, antagonismo – entre liberalismo e socialismo, entre esquerda e direita, entre valores morais (a que ele atrevidamente chama conservadorismo) e sociedade-bordel (a que ele irresponsavelmente chama progressismo), significa apenas que falta ao candidato a compreensão daquilo que realmente distingue as doutrinas filosóficas, morais e políticas. Sem estes instrumentos ele não consegue discernir por onde afina a esquerda e afina a direita.
Esta incompreensão torna-se perigosa num candidato que pretende tratar das nossas vidas. Com tais limitações intelectuais, sem conhecimentos elementares, mesmo sem aquela compreensão da vida que a um simples cavador a sabedoria dá, que políticas pode produzir tal candidato?
2.3 – Para ele, então o que será a função política?
O candidato começa por dizer o que não é a função política: «Exercer uma função de liderança política não é estar na vanguarda da sociedade.» (p. 71, sublinhados do candidato).
Bem, então qual é a função da política? O que será um bom político? O «líder» não tem ideia do que fazer e não se coloca à frente da massa a guiá-la nos bons procedimentos, pelos bons caminhos, na construção do bem comum? Não será esta a função da elite política? O «líder» será afinal um mero navegador do sistema?... Que significará afinal a palavra líder? Mais uma vez, o candidato precisa de ir ao dicionário.
Mas será a frase do candidato um puro jogo de palavras demagógicas para exibir uma falsa modéstia ou um desnorte? Uma demagogiazita basista e populista ou uma falta de conceitos elementares de ciência política, nomeadamente sobre o sistema de partidos e o papel das elites nacionais? Falta de formação ou, mais uma vez, falta de sabedoria? Provavelmente tudo isto.
Não rompendo ao longo do seu Mudar com aquilo a que, no actual sistema, se chama «política», verifica-se, pois, que, para o candidato, a política continua a ser aquela comum habilidade para palrear, para manobrar e viver do sistema (a rapinar o mais possível). Aquilo a que Medina Carreira chama a arte de um «homem de circo». Afinal, nada é para mudar.
2.4 – O descambar no tecnocratismo
A ignorância dos conceitos elementares da política conduz o candidato àquelas soluções primitivas para os problemas que só os cérebros tecnocráticos vislumbram. Imbuído de ideias organicistas, ele propõe-se resolver os problemas da incompetência, da corrupção e da partidocracia com meras medidas orgânicas (p. 138 e seguintes). Ora estes problemas são bem mais profundos do que alguma vez ele imaginou, exigindo por isso medidas políticas profundas, algumas delas mesmo de natureza constitucional, já para não falar de uma concepção correcta do sistema de ensino (lá iremos). Mas ele acredita que, com os seus montes de regras e regrazinhas administrativas, e burocratizantes, na generalidade impraticáveis, iria resolver os problemas. É a visão tecno-administrativa em todo o seu esplendor.
Mas o tecnocratismo do candidato não fica por aqui. Ele postula que pode haver uma administração apolítica, puramente técnica (p. 138). Entretanto, já prevendo a acusação de tecno-ingenuidade, adianta-se a dizer que esta sua visão não é «naif» (p. 139) – não vão os leitores pensar mal dele! Então, além de tecnocratista, o que será? Masoquista?
Olhando para trás, vemos que, apesar de certas discordâncias pontuais do candidato com alguns dos valets de chambre de Cavaco, donde resultaram uns beliscões sem conteúdo político relevante, ele conviveu alegremente com o cavaquismo, merecendo-lhe «o Professor», globalmente, os mais rasgados elogios. Aliás, esta admiração era mútua. A manifestação das limitações políticas e intelectuais de tecnocratismo no candidato não é, pois, de agora.
2.5 – Do angelismo democrático à manutenção do sistema
Sobre o funcionamento do sistema democrático, o candidato apresenta igualmente ideias baralhadas: por um lado, ele deseja democracia, e, por outro, condena a chuva e o mau tempo que ela produz: lamenta a «confusão entre governo e administração, entre partido e governo, entre o que é público e o que é privado»... (p. 76-77).
Separemos as coisas.
No que toca à usurpação privada dos bens públicos, que obviamente deve ser combatida, que esperaria o candidato de certos comportamentos individuais – próprios da natureza humana – em plena liberdade no sistema democrático? Qual será esse santo e puro sistema democrático a que o candidato aspira que não permite tais comportamentos? Existirá? Ignorará a ambição humana na política e através da política, e as inerentes consequências no sistema democrático e de partidos? Aqui para nós, quantos dos seus apoiantes próximos é que não se serviram do sistema para arrumarem as suas vidinhas sem nada darem ao País ou para enriquecerem à la minute? O candidato que olhe à volta e talvez encontre alguns!
No que toca à participação política em defesa do bem comum, para que servirá afinal um partido – no bom, realista e necessário sentido – senão para tomar o poder e concretizar um projecto? Para que servirá afinal um governo senão para colocar o Estado a oficializar o projecto de um grupo, no concreto de um partido? E quem, no Estado, e em nome do Estado, irá concretizar esse projecto senão os mandatários desse partido?
Porque não questiona antes o candidato se um tal partido e um tal governo dele derivado têm um programa bom, servindo o bem comum, em vez de, candidamente – hipocritamente –, acusá-los de se confundirem? Pois que queria que fizessem? Que fazem todos os governos quando cumprem de facto os seus programas de partido senão confundir-se? Quem queria que concretizasse o seu programa? Talvez os membros dos partidos da oposição...
O candidato não compreende (ou finge não compreender) que o problema não está na identificação partido-governo mas na ausência de identificação partido-Nação e governo-Nação (quanto à identificação partido-governo, ainda lá voltaremos).
Será este candidato a chefe político um ingénuo, sem projecto político próprio e sem pensar dotar o seu partido de um projecto de poder, ou mais um demagogo a proferir angélicas e politicamente correctas palavras de circunstância? Efectivamente, o candidato parece não querer entender o que é a política, o que é um partido político e para que servem. Aí voltaremos.
2.6 – A veia socialista-democrata do candidato
É de doutrina socialista-democrata que se trata. Se quiser, pode abreviar para social-democrata, como é da tradição marxista, que poupa 4 letras a escrever e 2 sílabas a pronunciar. Não me importo.
Não é que este género de pessoas, socialistas-democratas, se interesse especialmente pelos pobres. Mas ninguém duvida que fica bem falar deles. Por isso não faltam no livro as tais «preocupações sociais», virtuais porque nunca se traduziriam em efectiva melhoria da vida das pessoas. Pelo contrário, as medidas socialistas, supostamente para proteger os pobres, têm normalmente o condão de agravar as suas condições de vida.
Na sua linha socialista-democrata, o candidato refere-se entusiasticamente à «redistribuição da riqueza» (p. 209) para consertar os males do mundo. E então, para que essa «redistribuição» corra bem, com equilíbrio orçamental, preconiza taxas progressivas nos impostos, o que, na prática, significa tornar ainda mais progressivas as actuais, que já são. E na segurança social pretende carregar ainda mais as empresas. Para generosamente «redistribuir»... Atenção, que noutra página qualquer queixar-se-á de maus tratos às empresas!
É curioso. O candidato, por um lado, pretende apresentar-se como um capitalista ajuizadinho. Mas depois arma em socialista-democrata – diferente coisa de ser amigo dos pobres. É o bom momento para nos perguntarmos: se é tão social(ista), tão «amigo dos pobres», em nome de quem falará quando preconiza a privatização de tudo quanto mexe, incluindo a própria a Caixa Geral de Depósitos?
2.7 – As grandes virtudes da inexperiência e da ignorância segundo o candidato
A grande descoberta de psicologia, lógica, teoria do conhecimento, sociologia e ciência política, onde o autor demonstra uma superior inteligência, está reservada para as pp. 77-78. Escreve o candidato (sublinhado por si):
«Temos, nos nossos dias, uma geração democrática em idade madura que não experimentou outras vivências não democráticas e que, portanto, não tendo termo de comparação, se torna mais exigente e impaciente com o actual estado de coisas. Esta geração, à qual pertenço, é hoje uma aliada natural para todos os que, mais velhos, sentem que a democracia não lhes trouxe as realizações que estavam prometidas e que Portugal se encontra perdido e mais distante do seu ideal do que é justo e necessário. (...)
«Este tipo de realismo pragmático, que está mais presente nas gerações do pós-74 (...)»
Como se consegue extrair saber político da ignorância de «outras vivências»!
Como se consegue ver vantagem em não ter termo de comparação!
Como se consegue encontrar bondade na ilusão da democracia fracassada!
Como se pode louvar a exigência por inconsciência?
Como se consegue descobrir virtude na impaciência!
Como se consegue descortinar realismo (quanto ao pragmático, já falei) através do desconhecimento!
Como um sujeito se deve sentir feliz nessa condição! Ignorante e inexperiente, mas contente!
Como é possível dizer tantos disparates em tão poucas palavras!
2.8 – O motor da mudança segundo o candidato
O candidato diz propor Mudar. Quem será «o motor da mudança»? Ele responde pronto: «São muitos os que se encaixam neste perfil.» (p. 150).
E cita. «Em primeiro lugar, os mais desfavorecidos». Ficamos assim a saber do socialista-democrata o que afinal já sabíamos de Marx, o pai da social-democracia: que a luta de classes é o motor da história.
E continua a citar: os que «não conseguem fugir à pesada carga fiscal» (que ele afinal pretende aumentar, contribuindo assim para a multiplicação desta força motriz da história);
os que «cultivam um comportamento eticamente mais correcto» (cai no foro individual e lá se vai a luta de classes!);
os que têm «espírito empreendedor» (e que ele iria desmotivar com impostos mais progressivos, com o aumento das taxas da Segurança Social e com a teoria da «redistribuição»);
os que «desempenham as suas tarefas com profissionalismo e dedicação ...»;
os jovens que assim e assado...
E o candidato acrescenta que «A lista poderia continuar» (p. 151), que «não se trata de um ou dois grupos sociais definidos e que é antes um somatório de condições» (entenderam???).
O «motor» seria «um conjunto sem coesão ideológica» e «independente das suas tradicionais preferências partidárias».
Apesar do candidato se esmerar em frases supostamente densas, mas na verdade imprecisas quando não indecifráveis, consegue perceber-se que o motor da história são, afinal, todos... Não há reboque para o motor...
Mesmo para qualquer leitor amador de semanários de actualidade política, é óbvio que o candidato-teórico está a confundir várias coisas: a convergência eleitoral, circunstancial, que deve ser a mais ampla possível em torno de um programa (de efectiva mudança e não mais um programa eleitoralista); a base social ou conjunto de sectores sociais principais em que se apoia o Partido; e o motor da mudança, o próprio Partido, especialmente o seu núcleo dirigente, como força promotora do projecto e mobilizadora e organizadora de todas as outras forças participantes.
O candidato tudo confunde. Para a sua camioneta, estas coisas elementares são demasiada areia.
(Continua)
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