Nuno Cardoso da Silva
A sucessão real
Numa Monarquia em que o Rei tenha poderes efectivos, dos quais dependa uma importante parte da estabilidade do regime e da eficácia do sistema, as qualidades pessoais do Rei e a sua preparação para o desempenho da função real adquirem uma importância muito maior do que nas Monarquias em que o Rei é apenas uma figura representativa do Estado, sem quaisquer poderes reais. A forma de designação do monarca assim como os mecanismos de sucessão passam portanto a ter uma importância decisiva para a realização do bem comum.
Historicamente, a sucessão monárquica tanto pode ser electiva como hereditária, embora os casos de Monarquia electiva tenham sido bastante raros. Electiva era a Monarquia visigótica, da qual nasceram todas as Monarquias peninsulares, assim como o era a Monarquia polaca, em tempos bastante mais próximos. Igualmente electivo era o Sacro Império, embora este pouco mais fosse do que uma vaga confederação de estados. No entanto, o termo electivo pode induzir em erro, já que nem o colégio eleitoral era universal, nem os elegíveis eram multidão. No Sacro Império a eleição era realmente uma cooptação entre os príncipes alemães, na Polónia só os membros de três casas nobres podiam ascender ao Trono, e no Reino Visigótico só os membros da estirpe real podiam ser eleitos reis. O princípio destas eleições não era outro senão o que ainda hoje preside às eleições democráticas: a escolha do melhor para desempenhar certas funções governativas. E tal como acontece nas nossas democracias, a própria existência de escolha gerava o aparecimento de facções e de conflitos. Só que, nas Monarquias, o prémio era de tal forma apetecível que os conflitos rapidamente ganhavam proporções catastróficas para os países em questão. A Monarquia visigótica foi destruída pelos mouros na sequência de um tal conflito entre candidatos ao Trono - um dos quais não hesitou em chamar em seu auxílio os berberes do Norte de África. A Monarquia polaca foi não só vítima da ambição dos seus poderosos vizinhos - Rússia, Prússia e Áustria - como dos conflitos que o seu sistema monárquico eleitoral veio a gerar no seu seio.
A hereditariedade como sistema de sucessão acabou por se afirmar exactamente como reacção aos conflitos que os sistemas eleitorais geravam, ou aos que se manifestavam quando a realeza era ocupada pelo nobre, ou pelo chefe de clã, que dispusesse de mais força. Frequentemente a sucessão transformava-se num longo período de lutas, em que o candidato mais forte eliminava os concorrentes, e até por vezes as suas famílias.
Em Portugal, o princípio hereditário rapidamente se afirmou, apesar dos primeiros reis ainda sentirem a necessidade de designar os seus sucessores em testamento, tendo apenas sido mantido, como reminiscência do princípio eleitoral que vigorava na Monarquia visigótica, a cerimónia da aclamação do novo Rei, tradicionalmente ligada ao juramento do novo monarca de respeitar as liberdades, foros e privilégios dos seus povos, e de fazer justiça.
Segundo a tradição, não há qualquer razão para que o princípio hereditário não seja mantido e respeitado, até porque é ele que melhores garantias dá da independência do Rei, que não fica a dever nada a quem quer que seja. Mas isso não significa que se não analisem alguns dos problemas que tal método pode trazer consigo, nomeadamente a possível incapacidade do herdeiro do Trono para desempenhar cabalmente a função régia. Com efeito, é esta possibilidade que tem servido de argumento principal aos que recusam a Monarquia. Ora, neste problema de incapacidade teremos de distinguir entre incapacidade absoluta - seja ela de origem física ou psíquica -, e incapacidade funcional, que se poderá traduzir por uma falta de competência para desempenhar a função régia de forma a garantir a defesa do bem comum, sem que ela seja devida a uma qualquer patologia física ou intelectual. Com efeito, o primeiro caso era susceptível de ser resolvido sem grande dificuldade, já que as patologias em causa eram objectivamente constatáveis. A incapacidade de D. Afonso VI ou a demência de D. Maria I foram institucionalmente resolvidas, embora o primeiro caso tivesse deixado algumas dúvidas nos espíritos da época. Mas já a incompetência era quase impossível de resolver sem recurso a fórmulas extra-institucionais. A extrema imprudência de D. Sebastião, que o levou a lançar-se pessoalmente numa expedição africana sem ter garantido a sucessão, suscitou, entre alguns dos nobres da época, a ideia de impedir pela força o Rei de sair do Reino. Mas não se sabe se tal intensão seria acompanhada de outras medidas mais radicais contra o Rei. Quanto a outro caso óbvio de incapacidade para governar, que não era acompanhada de qualquer patologia - ou seja, o de D. José I - nada havia que as instituições da época pudessem fazer para resolver a situação. O governo despótico do Marquês de Pombal - só possível porque o Rei abdicara das suas responsabilidades, e era demasiado fraco para intervir contra os excessos do seu Ministro - manteve o país numa situação de ilegitimidade institucional, até que a morte do Rei levou à substituição e exílio interno do odiado ministro.
É evidente que a complexidade das sociedades modernas, e a correspondente complexidade dos problemas a resolver, exigem de um Rei com poderes de facto, um nível razoável de inteligência, de cultura, de conhecimentos, de interesse e de preparação, que seriam difíceis de reunir numa pessoa com capacidades intelectuais abaixo da média. Por outras palavras, a incapacidade para governar não se verificaria apenas em quem estivesse ferido de graves incapacidades físicas ou intelectuais. Assim sendo, haverá de acautelar, de forma institucional, a possibilidade do herdeiro presuntivo do Trono não ter condições para assumir as suas responsabilidades como Rei. Para resolver este problema sem abandonar o princípio hereditário, e sem recriar as condições de instabilidade que foram fatais às Monarquias electivas, pode-se recorrer a mecanismos envolvendo o Conselho de Estado. Com efeito, o Conselho de Estado podia ser responsável pelo acompanhamento da educação não só do herdeiro presuntivo como também dos outros Príncipes que estivessem a seguir na linha de sucessão, e estar institucionalmente encarregado de formalizar junto das Cortes a proposta de reconhecimento e juramento do Herdeiro do Trono, quando este chegasse à maioridade (18 anos). Se o Conselho de Estado chegasse à conclusão que o herdeiro presuntivo não possuía as qualidades necessárias ao bom desempenho da função régia, podia propor às Cortes o reconhecimento e juramento de um outro Príncipe, respeitando tanto quanto possível a ordem de sucessão. Uma vez que essa seria uma das funções do Conselho de Estado, a sua decisão, mesmo que desfavorável ao herdeiro presuntivo, não constituiria uma crise dinástica. Ou seja, a Monarquia continuaria a ser formalmente hereditária, mas com mecanismos correctivos institucionalizados. E dado que o Conselho de Estado é um órgão de dimensão restrita, gozando da confiança tanto do Rei como das Cortes, não haveria o perigo de se formarem facções no seu seio apenas com o intuito de elevar ao Trono o «seu» candidato. Estaria assim eliminado tanto o perigo de ver alguém menos qualificado a subir ao Trono, como o perigo de desencadear lutas de facções próprias das Monarquias electivas.