Pedro Vaz Patto
No momento em que escrevo [2010], está em discussão numa comissão da Assembleia da República o Projecto de Lei nº 319/XI, do Bloco de Esquerda, que «altera o Código de Registo Civil, permitindo a pessoas transexuais a mudança de registo do sexo no assento de nascimento»[1]. De acordo com este Projecto, bastará, para tal mudança, essencialmente, a apresentação de documento médico comprovativo de que a pessoa em causa vive, há pelo menos dois anos, no «sexo social desejado», ou que tenha estado, há pelo menos um ano, em tratamentos hormonais com vista ao ajustamento das suas características físicas às «do sexo em que vive» (artigo 3º). Pretende-se que fiquem essas pessoas dispensadas de (como tem sucedido até aqui) recorrer aos tribunais só quando se tenha concretizado, através de operação cirúrgica, essa mudança de características físicas (com todas as delongas daqui decorrentes) para obter tal mudança de registo[2]. Esta mudança poderá, pois, ser obtida por via administrativa sem que se tenha concretizado qualquer mudança de características físicas.
No momento em que escrevo [2010], está em discussão numa comissão da Assembleia da República o Projecto de Lei nº 319/XI, do Bloco de Esquerda, que «altera o Código de Registo Civil, permitindo a pessoas transexuais a mudança de registo do sexo no assento de nascimento»[1]. De acordo com este Projecto, bastará, para tal mudança, essencialmente, a apresentação de documento médico comprovativo de que a pessoa em causa vive, há pelo menos dois anos, no «sexo social desejado», ou que tenha estado, há pelo menos um ano, em tratamentos hormonais com vista ao ajustamento das suas características físicas às «do sexo em que vive» (artigo 3º). Pretende-se que fiquem essas pessoas dispensadas de (como tem sucedido até aqui) recorrer aos tribunais só quando se tenha concretizado, através de operação cirúrgica, essa mudança de características físicas (com todas as delongas daqui decorrentes) para obter tal mudança de registo[2]. Esta mudança poderá, pois, ser obtida por via administrativa sem que se tenha concretizado qualquer mudança de características físicas.
Com os mesmos
objectivos, foi, entretanto, apresentada, pelo Governo, na Assembleia da
República a Proposta de Lei nº 37/XI[3], que «cria o
procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil e procede à
18º alteração do Código de Registo Civil». Para essa mudança, de acordo com
esta Proposta, bastará, essencialmente, a apresentação de «relatório elaborado
por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica, em estabelecimento de
saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro, que comprove o diagnóstico
de perturbação de identidade de género», também designado como transexualidade
(artigos 1º, nº 1, e 3º, b)).
Estes dois
diplomas seguem a orientação das chamadas «leis de identidade de género», de
que é exemplo a Lei espanhola (Ley nº 3/2007). Este diploma, referido como
modelo na exposição de motivos de ambos os diplomas, foi aprovado na sequência
e na linha da aprovação da alteração, em 2004, da definição legal de casamento
no Código Civil espanhol de modo a nela incluir casamentos entre pessoas do
mesmo sexo. Os passos que os proponentes dos diplomas em causa pretendem seguir
são, pois, decalcados, da experiência espanhola.
Além da
legislação espanhola, outras têm introduzido esta inovação. Assim, a Transgendergesetz
alemã de 2000, o Gender Recognition Act britânico de 2004 e a Lei
argentina de 2008. A Lei italiana n. 164, de 14 de Abril de 1982, em vigor
(também referida na exposição de motivos da Proposta de Lei em apreço), exige,
pelo contrário, uma operação cirúrgica irreversível para que seja admissível a
mudança de registo oficial do sexo de uma pessoa.
Numa primeira
apreciação, poderá dizer-se que a mudança do registo oficial do sexo de uma
pessoa, de modo a corresponder ao seu «sexo social desejado», nenhuma
perturbação causará a outras ou à sociedade em geral. Argumentação semelhante
também se ouviu a respeito da discussão sobre a legalização do casamento entre
pessoas do mesmo sexo (com essa legalização nenhum casal heterossexual ficaria
privado de direitos). Nesse caso, porém, estava em causa a definição legal de
uma instituição matricial e de referência sem paralelo, com tudo o que isso
implica no plano cultural; não pode dizer-se que isso não afectará a sociedade
em geral. Neste caso, não está em causa uma instituição com a relevância social
do casamento, nem o reconhecimento e protecção desta no plano cultural.
É manifesto o
exagero em que incorrem os proponentes de alterações legislativas como esta
quando quase parecem sustentar que a mudança do registo oficial do sexo pode
condicionar o exercício de direitos como os de acesso à saúde, à habitação ou
ao trabalho (a exposição de motivos do Projecto de Lei referido também cai
nesse exagero). Quando a ordem jurídica não consagra discriminações em função
do sexo, é óbvio que o exercício de algum desses direitos não dependerá nunca
de alguma mudança do registo oficial do sexo. O que se verificará é, antes, a
perturbação e a humilhação (sim, devemos reconhecê-lo) próprias de quem se vê
forçado a, no exercício desses e de outros direitos, evidenciar a
desconformidade entre o registo oficial do seu sexo e o seu «sexo social
desejado» ou o «sexo em que vive»,para usar as expressões desse Projecto de
Lei.
A situação
destas pessoas, e o seu sofrimento, não podem deixar de merecer consideração.
Mas não me parece que sejam alterações jurídicas como esta que façam
desaparecer esse sofrimento. E, sobretudo, não me parece que, para isso, se
possa aceitar uma subversão do papel do legislador em relação ao que é a
realidade e a verdade das coisas. Sobre a questão da transexualidade em geral,
faltam-me os conhecimentos científicos necessários para uma análise
aprofundada. Por isso, não me deterei nela. Sobre o papel do legislador,
gostaria de tecer algumas considerações um pouco mais desenvolvidas.
Não é por acaso
que as leis «de identidade de género» surgem na sequência ou em estreita
ligação com a redefinição legal do casamento de modo a nela incluir casamentos
entre pessoas do mesmo sexo. Estamos perante uma agenda de afirmação
ideológica. Está em causa a afirmação da chamada ideologia do género (gender
theory) e a sua tradução no plano legislativo. O que é, desde logo, questionável
é a legitimidade da redução da Lei a instrumento de afirmação ideológica.
Estamos perante uma verdadeira «revolução cultural» que vem de cima, das
instâncias políticas e legislativas, e não surge espontaneamente da sociedade
civil e da mentalidade corrente. Pretende-se transformar através da política e
do direito essa mentalidade. Este tipo de objectivo é tendencialmente
totalitário E o que está em causa não é um aspecto secundário, mas referências
culturais fundamentais relativas à relevância da dualidade sexual.
Em paralelo com
estas alterações legislativas assistimos à transformação dos hábitos
linguísticos (a lembrar a «novilíngua» de Orwell): em documentos oficiais e no
nome de instituições oficiais (como a «Comissão para a Cidadania e Igualdade de
Género», por exemplo) deixou de falar-se em «igualdade entre homens e mulheres»
e passou a falar-se em «igualdade de género», sem que muitas das pessoas que
passaram a usar esta expressão por uma questão de «moda» sequer se apercebam da
sua conotação ideológica.
E também o
sistema de ensino, como o sistema jurídico, serve de instrumento de afirmação
ideológica (também esta uma tendência de tipo totalitário). Assim, por exemplo,
a Portaria nº 196-A/2010, de 9 de Abril, que regulamenta a Lei nº 60/2009, de 6
de Agosto, relativa à educação sexual em meio escolar, inclui, entre os
conteúdos a abordar neste âmbito e no 2º ciclo (5º e 6º anos) «sexualidade e
género». Em Espanha, a instrumentalização do ensino, através da disciplina de
«Educação para a Cidadania», no sentido da difusão da ideologia de género,
que também se seguiu à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
tem suscitado um vasto movimento de recusa de frequência com invocação da
objecção de consciência por parte de muitos encarregados de educação que sentem
violados os seus direitos.
Gabriele Kuby
exprime deste modo o alcance da transformação de mentalidades em questão:
«Porque a palavra cria a realidade, as mudanças sociais caminham sempre a par e
passo com a mudança da língua. (…) Existe também um novo termo, útil para
extrapolar a sexualidade da polaridade de homem e mulher e para a submeter à
livre disponibilidade do indivíduo: o termo é gender. Por ele se entende
o sexo «social», arbitrariamente seleccionável, diferente daquilo que distingue
sexualmente o homem da mulher. Num contexto popular a ideia de gender
nasceu há pouco tempo e, todavia, representa a ponta de diamante da revolução
relativista»[4].
[1] Acessível
em www.parlamento.pt.
[2] Como
se refere na exposição de motivos do Projecto, a jurisprudência tem considerado
até aqui (designadamente nos acórdãos da Relação de Lisboa de 9 de Novembro de
1993 e de 22 de Junho de 2004 aí citados) que na situação de mudança de
características físicas se verifica uma lacuna na legislação em vigor e que, de
acordo com as regras de integração de lacunas decorrentes do artigo 10º do
Código Civil, essa lacuna deve ser superada através da aplicação da norma que o
legislador criaria se considerasse a situação. Essa norma admitiria a mudança
de sexo à luz do direito constitucional à identidade pessoal (artigo 26º, nº 1,
da Constituição), a qual abrange a identidade sexual.
[3] Acessível
em www.parlamento.pt.
[4] Gender
Revolution, Ilrelativismo in azione, (tradução italiana),
Edizioni Cantagalli, Siena, 2008, p. 27