Maria João Marques, Observador, 19 de Outubro de 2016
Credo,
os religiosos ambientalistas não se querem confundir com os religiosos
católicos, que esses são ultramontanos e rústicos. Que proponham exactamente o
mesmo é um mero pormenor.
A
literatura é um instrumento muito útil para percebermos o mundo ou, o que vai
dar ao mesmo, a natureza humana. Dou um exemplo: para entendermos as hordas
moderníssimas e progressistas actuais, Mr. Henry Spoffard dá-nos uma bestial
ajuda.
Apresento-vos
Mr. Henry Spoffard. Filho de uma família antiga e piedosa de Filadélfia, tinha
uma importante missão no mundo: manter a moralidade do bom povo americano, por
via de o afastar coercivamente das tentações que o encarrilhariam no caminho do
pecado. Mr. Henry Spoffard acreditava em manter a pureza dos outros mesmo, ou
sobretudo, contra a vontade desses outros. Foi criado por Anita Loos, diz-se
que inspirado num censor de Hollywood com que a autora embateu, para um dos
romances mais divertidos do século XX americano: Gentlemen Prefer Blondes. E
vinha na tradição dos moralistas anteriores: a sua grande causa de escândalo
eram as transgressões sexuais das endiabradas sociedades.
Noventa
anos depois do debute no mundo de Mr. Henry Spoffard, felizmente os assuntos de
cama – excepto os que atropelam a liberdade sexual de cada indivíduo, também
conhecidos por violações ou abusos sexuais – já são vistos como estando fora da
esfera opinativa (e punitiva) dos abelhudos moralistas. Mas, para a troca,
temos um rol infindável de puritanos, expansionistas militantes da sua moral
estrita, em todas as questões alheias à sexualidade. Infelizmente nem têm o
benefício de Mr. Henry Spoffard – o de ser ficcional, claro.
Vejamos
os religiosos do aquecimento global, por exemplo. E em minha defesa – antes que
me excomunguem – digo já que sou bastante sovina, e poupada, no que toca a bens
isentos de qualidades estéticas como gasolina e electricidade, e que tenho uma
forte paranoia com a reciclagem e reutilização de uns tantos materiais. Mas, lá
está, falta-me o fervor religioso.
A
incitação para que as populações se abstenham de consumir, um exemplo, costuma
mergulhar-me na vontade de praticar vudu contra os detentores de tal opinião.
Não (ou sim, mas de maneira diferente) que estejam preocupados ser mais fácil
um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino dos céus.
Credo, os religiosos ambientalistas não se querem confundir com os religiosos
católicos, que esses são ultramontanos e rústicos. Que proponham exactamente o
mesmo é um mero pormenor. As motivações são muito mais nobres que essas tretas
de não nos deixarmos escravizar pelos bens materiais. Os ecofanáticos defendem
que se extermine o consumo (e, de caminho, o bem estar das populações) para
poupar os recursos do planeta (estes religiosos nunca leram Malthus) e para não
causar poluição com transportes de mercadorias.
Outro
tipo de moralista, bem mais perigoso, é o purista sanitário. Pode-se praticar
sexo à vontade, felizmente está estabelecido, e uma ou outra consequência para
a saúde ou para a vida (uns sopapos do cônjuge enganado, por exemplo) devem ser
encarados com bonomia, que as pulsões sexuais são fortes e difíceis de conter.
Mas
não há cá complacência com o álcool (já os antigos diziam que era o pai de
todos os vícios, e os antigos alguma vez haviam de ter razão), ousar ter a
comida bem apaladada com sal (as pessoas puras de corpo e alma não têm de lhe
pagar os comprimidos para a tensão arterial) ou beber refrigerantes açucarados
(agora que já se verificou que afinal o colesterol e a gordura não causam o
apocalipse humano que os médicos prometeram, teve de se encontrar novo inimigo
para atormentar as populações e viraram-se para o açúcar, o novo supervilão;
até, claro, dentro de uns anos se reconhecer que o açúcar é essencial para um
bom desenvolvimento cerebral das crianças, entre outras maravilhas que então o
açúcar de súbito conquistará).
Fumar,
esse hábito decadente, devia ser tipificado no código penal ao lado de, pelo
menos, uma agressão agravada. Ou, em alternativa, sentenciado sumariamente a
internamentos compulsivos de seis meses numa colónia vegan. Só pessoas muito
depravadas fumam.
Sem
surpresa, o método preferido para estes moralistas obrigarem os celerados
hipertensos, chaminés e sucedâneos de Winston Churchill a reformarem-se são os
impostos. Inevitavelmente, abundam à esquerda – e acabaram de aprovar impostos sobre
estes vícios imorais. Afinal pagamos tão poucos impostos agora, era mesmo muita
lata nossa exigirmos um SNS a acudir às doenças em vez de, sei lá, um SNS para
pagar mais aos profissionais de saúde por via das 35 horas. (E quando digo
esquerda incluo, evidentemente, parte da anterior coligação que
sonhava com o mesmo entusiasmo com estas medidas.)
Voltando
a Mr. Henry Spoffard, como descreveu Anita Loos na sequela But Gentlemen Marry
Brunettes, «ele não se importava verdadeiramente o que uma rapariga tinha
feito, desde que ela não se divertisse no final […] se raparigas como Dorothy
não pagassem, e pagassem, como conseguiriam ter as pessoas morais a satisfação
de as ver sofrer. E o que aconteceria à Cristandade?» É acautelamo-nos, porque
enquanto estes moralistas não sentenciarem que já tivemos dolorosa penitência
por aquele gin tónico com frutos silvestres, não descansarão as garras.