sábado, 3 de março de 2012

Onde para o acento?

Nuno Pacheco, Público






Não estranhem o título. Se não lhe encontram sentido, saibam que, «agora», é assim que se escreve. No tal «bom português» que por aí se vende como sabonetes. Um exemplo recente: na edição dos contos de juventude de John Cheever ( Fall River e outros contos dispersos, Sextante, 2011), a mesma editora que dera à estampa os fulgurantes Contos Completos , em dois volumes e num português decente, cedeu à tentação da novilíngua. E o pobre Cheever é posto a «escrever» frases como esta (Pág. 134): «Oh, para com isso, Charles! - disse a Srª. Dexter, impaciente.» Para com isso... fazer o quê, alguém explica? Cheever não pode, que já morreu. O tradutor também não, porque «é a lei» e ele não tem culpa nenhuma. A editora dirá o mesmo. E, como a vida não «para», temos que aturar isto.

Temos? Não é assim tão certo. A aplicação do acordo tem vindo a fazer-se, não por qualquer lógica ou aprendizagem mas por métodos mecânicos. Escreve-se um texto, enfia-se no Lince e já está. O Lince é uma espécie de Bimby para as letras, só que, em lugar de fazer bons cozinhados, produz péssimas mistelas. Há quem não se importe. O próprio José Saramago, em Junho de 2008, numa entrevista ao programa Diga Lá Excelência (do PÚBLICO, Rádio Renascença e RTP2), dizia: «Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com "c" ou não. Os revisores encarregam-se disso.» Mas aceitava o acordo como uma fatalidade: «Creio que temos de embarcar nesse comboio, mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio.» Haver havia, mas tanto insensato encolher de ombros ajudou a que não houvesse. Agora o negócio não «para», como se vê.
Na sua regular crónica na revista «Atual» (sic) do Expresso , Pedro Mexia, um dos vários que ali (e bem) escrevem «de acordo com a antiga ortografia», veio na edição de 14 de Janeiro defender-se desse epíteto, dizendo que admiti-lo será "como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto «antiga": antiquada, decrépita, morta.»E, a dado passo, também ele assinala «os imparáveis espalhanços de um ‘’pára’’ do verbo »para" que perde o acento e talvez o assento." Já alguém lembrou, ajuizadamente, que a aplicação da nova norma a certas frases daria disparate pela certa. Por exemplo, em lugar de «greve geral pára o país», ficaria «greve geral para o país». Totalmente diferente, não? E como ficaria o título de uma das mais recentes crónicas de Miguel Esteves Cardoso, «Alto e pára o baile»? «Alto e para o baile»? A primeira manda parar de dançar; a segunda apela a que se dance. Que idiota terá sancionado isto?
Talvez todos. Talvez nenhum. O certo é que já se admite que, sim, talvez haja correcções ao acordo, não se sabe quando, mas esta poderá até ser uma delas. E o que sucederá depois, não nos dizem? Venderão os acentos à parte, avulsos, em bolsinhas de plástico, para colarmos nos livros antes assassinados por tamanha displicência? Pedirão desculpa? Indemnizarão os leitores? Serão presos? Nada disso sucederá, porque a estupidez, e não só em Portugal, não é crime. É um modo de vida. E em geral lucrativo.


sexta-feira, 2 de março de 2012

Deus maiúsculo ou jornalismo minúsculo?


P. Gonçalo Portocarrero de Almada








Num artigo publicado recentemente num jornal de referência, diz-se que Deus não merece maiúscula, porque mais não é do que um substantivo masculino. Salvo melhor opinião, Deus é, na realidade, um nome próprio, como Moisés, Jesus ou Maomé. O correspondente substantivo abstracto é «divindade» que, esse sim, se pode grafar com minúscula. Mas não Deus, que é alguém e não alguma coisa, uma entidade real subjectiva e não um objecto, nem muito menos uma mera ideia ou vaga suposição.
Não obstante a despromoção divina, admite-se nesse mesmo texto o uso da maiúscula quando o contexto o exija, ou seja, quando se citam crentes ou para eles se destina o texto, mas não quando quem escreve é assumidamente ateu ou escreve para não-crentes, em cujo caso deve prevalecer a minúscula. De adoptar este relativismo, a grafia deverá corresponder ao grau de adesão à realidade significada. Poder-se-ia assim enriquecer a sabedoria popular com mais um provérbio: diz-me que maiúsculas escreves e dir-te-ei quem és!
Se a descrença do jornalista justifica o uso da minúscula no santo nome de Deus, é óbvio que se o dito não acreditar no Butão, nem no Burkina Faso, países que suponho que nunca terá visto, como nunca viu Deus, também deverá escrever com minúsculas as iniciais desses países, não menos abstractos para o seu entendimento do que a sua muito abstracta noção de Deus.
Se pega a moda de uma escrita personalizada à medida dos caprichos do freguês, os monárquicos deverão escrever em minúsculas as iniciais dos nomes dos presidentes da República; os ateus deverão fazer o mesmo com os nomes dos santos; etc., o que permitirá a milagrosa multiplicação da nossa língua: português-republicano, português-monárquico, português-cristão, português-pagão, português-comunista, português-fascista, etc.
A favor desta esquizofrenia ortográfica, invoca-se muito despropositadamente um poeta. Esquece-se, contudo, que não colhe aplicar ao jornalismo as regras que são próprias da escrita literária pois, caso contrário, as crónicas dos jornais deveriam também rimar e cumprir os outros cânones da poética. O jornalista está para o facto relatado como o fotógrafo para a realidade retratada: comparar-se aquele com o literato é tão absurdo como permitir ao retratista as geniais divagações de um Picasso.
Como convém a um texto muito politicamente correcto, apela-se à laicidade para fundamentar um pretenso direito a não acreditar em Deus. É evidente que qualquer cidadão tem todo o direito de acreditar, ou não, em quem quiser, mas não de impor as suas crenças ou descrenças.
Ou seja, mesmo não concordando com quem subscreve tão peregrinas teses, não me é lícito desrespeitar o seu nome, nomeadamente grafando-o com minúsculas, porque uma tal atitude não releva uma legítima expressão de são pluralismo, mas um insulto à dignidade da pessoa referida. O mesmo se diga, por maioria de razão, do nome de Deus: o desrespeito ortográfico não é mais do que uma gratuita ofensa ao próprio e a quantos n’Ele crêem. Essa opção gráfica não se funda na laicidade, mas na intolerância de quem impõe aos outros as suas próprias opiniões ideológicas, porque é incapaz de aceitar e respeitar a diferença. O dogmatismo deste laicismo, que mais não é do que a expressão de uma ignorância – pois a descrença é um não-conhecimento – não é apenas uma ofensa a Deus e à religião, mas também à democracia e à liberdade.
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, um jornalista é uma «pessoa que trabalha no domínio da informação […] e cuja actividade consiste em redigir artigos, fazer entrevistas, moderar debates, participar na elaboração dos jornais». Ao jornalista pede-se, portanto, que informe com verdade e objectividade sobre a realidade social, política, religiosa, etc., mas que não se disfarce de improvisado teólogo ou pseudo-filósofo de miudezas, sob pena de ofender o Deus maiúsculo e de se converter num jornalista minúsculo.

Questões do Estado de Direito

Vasco Graça Moura

O que é que haverá de comum entre personalidades tão diferentes como Pedro Santana Lopes, Jorge Bacelar Gouveia, José António Saraiva e Henrique Monteiro? Face aos jornais das últimas semanas, a resposta é muito simples: todos defendem o Acordo Ortográfico, todos discordam das posições que tenho sustentado, todos, pelos vistos, entraram em alerta vermelho com os textos publicados no Jornal de Angola, e todos evitam tomar posição sobre questões que são essenciais.
A primeira dessas questões é a da entrada em vigor do AO. Toda a gente sabe que, não tendo sido ratificado pelas Repúblicas Populares de Angola e de Moçambique, ele não entrou em vigor.
A ratificação é o acto pelo qual um estado adverte a comunidade internacional de que se considera obrigado nos termos do tratado que subscreveu juntamente com outros estados. No que a este caso interessa, o tratado entra em vigor na ordem jurídica internacional logo que ratificado por todos os estados signatários. A partir do momento em que entre em vigor na ordem jurídica internacional, essa convenção será recebida na ordem jurídica interna do estado signatário. Antes, não pode sê-lo.
Não estando em vigor na ordem jurídica internacional, nem ele nem, por identidade de razão, o bizarro segundo protocolo modificativo, uma vez que também não foi ratificado por aqueles estados, o AO não está nem pode estar em vigor na ordem jurídica portuguesa.
Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a este ponto.
Ora, sem o AO estar em vigor, a solução é muito simples: continua a vigorar a ortografia que se pretendia alterar. Como estamos num estado de Direito, a solução é só essa e mais nenhuma. E a lei deve ser cumprida por todos.
A segunda questão prende-se com a exigência, feita pelo próprio AO (art.º 2.º), de um vocabulário ortográfico comum, elaborado com a participação de instituições e órgãos competentes dos estados signatários. Não existe. Qualquer outro vocabulário que se pretenda adoptar, seja ele qual for, será uma fraude grosseira ao próprio acordo...
A resolução do Conselho de Ministros do Governo Sócrates (n.º 8/2011, de 25 de Janeiro) raia os contornos de um caso de polícia correccional: produz uma distorção ignóbil da verdade ao afirmar, no preâmbulo, que adopta «o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico». É falso.
Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a este ponto.
Mesmo que entendessem que o AO está em vigor, uma coisa é certa: nenhum entendimento, nenhum diploma, nenhum sofisma político ou jurídico pode dar existência àquilo que não existe.
Sendo assim, e não se podendo aplicar o AO por falta de um pressuposto essencial à sua aplicabilidade, continua em vigor a ortografia que se pretendia alterar por via dele. Como estamos num estado de Direito, a solução é só essa e mais nenhuma. E a lei deve ser cumprida por todos.
O grande problema é portanto o de que cumprir o Acordo Ortográfico, no presente estado de coisas do nosso estado de Direito, implica não o aplicar! Ou, dizendo por outras palavras, fazer de conta que se aplica o AO é violá-lo pura e simplesmente, na sua letra e no seu espírito...
Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a esta situação paradoxal de que, certamente, tiveram a argúcia de se aperceber.
De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal!
Acrescento que estou um tanto ou quanto farto de ter de voltar a estas coisas com alguma frequência. Mas tenho mais apego à minha língua do que a muitos outros interesses pessoais. E voltarei ao assunto as vezes que for preciso.
Para já, trata-se de instar quatro pessoas que considero e com quem tenho uma relação cordial, a que respondam aos pontos que levantei e aproveitem para ponderar as judiciosas considerações que sobre o assunto o Jornal de Angola tem publicado. Não perdem nada com o exercício.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Primeira República e Igreja Católica


O livro «Primeira República Portuguesa e Igreja Católica», de monsenhor João Gonçalves Gaspar, vai ser lançado a 8 de Março no salão nobre do Teatro Aveirense.
A investigação editada pela diocese de Aveiro, de que o autor é vigário geral, será apresentada às 18h30 pelo bispo do Porto, D. Manuel Clemente, que assina o prefácio.
Prefácio
Agradecemos a Monsenhor João Gonçalves Gaspar mais este trabalho histórico-religioso, de grande oportunidade e valia.
Mais este, porque vem de longe o seu interesse pela temática, bem evidenciado em vários e preenchidos escritos, com especial relevo para os três volumes que dedicou ao Bispo Lima Vidal. De grande oportunidade é o presente estudo, na esteira das comemorações do centenário da implantação da República, que deu azo a muitas publicações sobre o assunto.
Graças a estas publicações, temos hoje uma visão muito mais pormenorizada e circunstanciada do que sucedeu em Portugal nas primeiras décadas do século passado. Pormenorizada, porque se evidenciaram ou releram fontes fundamentais ou particulares que nem sempre apareciam, ou eram ignoradas do grande público; circunstanciada, porque essas mesmas leituras ou releituras, em geral serenas e equilibradas, souberam situar melhor os depoimentos e as intervenções dos protagonistas de então.
Também aqui este trabalho de Monsenhor Gaspar nos dá boas contribuições, com referências documentais que não conhecíamos ou precisavam de integração. E podemos dizer que o equilíbrio dos seus comentários coincide geralmente com o resultado geral das referidas publicações do centenário.
E é esta, muito especialmente, a sua valia. Não nos interessam ajustes de contas com o passado, mas ajustar o presente à sua memória mais correta. Memória que, mesmo sendo «colectiva», conjuga sempre realidades marcadamente pessoais. Quanto à liberdade e à responsabilidade, referem-se sempre a alguém, que pensou e agiu desta ou daquela maneira, por esta ou aquela razão e a partir desta ou daquela posição, motivada por estas ou aquelas influências.
Se isto é verdade em geral, muito mais o é no que à 1ª República concerne. Talvez nunca na história portuguesa se tenham entrechocado tantos, dentro de ideários mais próximos do que pareciam: – Quem não queria, por exemplo, «regenerar» Portugal, de 1820 a 1910 e ainda depois? - Não era isso mesmo que o hino adotado e ainda cantado pretendia, para «levantar hoje de novo o esplendor de Portugal»? Monárquicos ou republicanos, socialistas ou mesmo anarquistas, entre todos se aspirava a uma nova alvorada pátria. O problema estava em defini-la: - Voltando à monarquia tradicional, anterior a 1820-1834, ou aprofundando a constitucional, aliando melhor monarquia e democracia, como em Inglaterra e noutros reinos? - Com uma república municipalista e federal, como na Suíça, ou unitária e centralizada, para levar por diante as mudanças requeridas, vencendo resistências e oposições?
De tudo isto se falava e com tudo isto se esgrimia. Mais ainda quando a vontade de mudança ou alteração profunda das coisas consentia perspectivas demasiado distintas: - Importava retomar a «alma» portuguesa na sua conotação religiosa e católica, mesmo na aplicação social que o pontificado de Leão XIII (1878-1903) lhe dera, ou, muito pelo contrário, havia de se afastar de vez tal conotação, em obediência à marcha «positivista» da história, que reduzia cada vez mais a religião ao íntimo da consciência de cada um, sem qualquer transposição pública da crença?
E quanto ao Estado, na sua relação com a Igreja: - Devia continuar-se em regime público-eclesiástico, com a definição religiosa do país e a quase integração da vida eclesial na administração civil, ou, como o liberalismo católico pretendia desde os anos vinte em França e depois pela Europa e além dela, era necessário «libertar» a Igreja da tutela estatal, mesmo que tal levasse à «separação» das duas esferas?
Estas e outras polémicas eram muito transversais a todo o campo político, antes e depois de 1910. Havia no «movimento católico português», sobretudo depois de 1870, quem subscrevesse mais ou menos pontos do liberalismo católico; e houve no republicanismo triunfante quem defendesse a supervisão estatal da vida católica, como era o caso do próprio Afonso Costa e da «sua» Lei da Separação… Assim como houve no campo católico figuras importantes que, mesmo antes de 1910, insistiam na atenção às ciências e aos «progressos do século» (Sena Freitas, Gomes dos Santos e tantos mais).
Louvo e agradeço o trabalho de Monsenhor Gaspar, pelo manancial de factos e figuras que muito bem conjuga e pelo tom geral com que os aprecia e apresenta. É um bom contributo para nos revermos e perspectivarmos, em sociedade e Igreja.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Cristóvão Colombo: cidadão português?


No próximo dia 10 de Março, pelas 15h00, o Arquivo Municipal de Loulé recebe uma conferência intitulada «Cristóvão Colombo: cidadão português?», proferida por Idália de Sousa Martins Pires.
A entrada é livre.
Faz 520 anos a 12 de Outubro deste ano que Cristóvão Colombo descobriu a América e não é de somenos importância, que recordemos este grande navegador tão intimamente ligado à História de Portugal.
Foi com surpresa que vi um documentário no Canal História sobre o célebre navegador e como se encaixavam facilmente todas as peças de um puzzle sobre a sua vida e, com grande espanto da minha parte, o referido documentário não fazia a mais leve alusão a Portugal. Intrigou-me o facto e perguntei-me se a omissão teria sido fruto de ignorância ou intencional. (...) perfilho da convicção de Mascarenhas Barreto, Manuel Luciano da Silva e outros investigadores de que Cristóvão Colombo era português .
Proponho-me nesta conferência refutar algumas afirmações pouco consistentes do referido documentário e, ao mesmo tempo, falar do que foi omitido por ignorância ou por quaisquer outras razões pouco claras.
Idália Pires nasceu em Loulé, a 23 de Junho de 1935. Diplomada pela Escola do Magistério de Faro no ano lectivo 1954/55 foi-lhe atribuído o prémio D. Ermelinda Aboim pela Câmara Municipal de Loulé. Leccionou 1º ciclo do Ensino Básico nas escolas Primárias de Vale Judeu, Areeiro, Vale Telheiro, Quarteira e Loulé. Licenciada em História pela Faculdade de Letras de Lisboa no ano lectivo 1979/80, leccionou na Escola C+S de Quarteira e na Escola Secundária de Loulé até 1997, data em que se aposentou.
Actualmente lecciona História do Algarve, em regime de voluntariado, na Universidade Sénior de Loulé.
É autora de um dos «Cadernos do Arquivo», o nº 4, cujo tema é: «Um olhar crítico sobre uma poderosa família nos alvores da Idade Moderna: a Família de Avis – 55ª anos após a morte do Infante D. Henrique».

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Antiga Ortografia


Pedro Mexia, Expresso







Fulano escreve «de acordo com a antiga ortografia», diz o aviso que acompanha estas crónicas. Eu agradeço que o «Expresso» me permita a objecção de consciência face ao chamado Acordo Ortográfico, e percebo que indique quem segue ou não as novas regras, para evitar confusões; mas suspeito que esta fórmula foi inventada por alguém que pretende colar aos dissidentes o vocábulo «antiga», como se nós escrevêssemos em galaico-português. Como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto «antiga»: antiquada, decrépita, morta.
Eu não sou pela «antiga ortografia» por caturrice. Estou contra o «acordo» porque me parece uma decisão meramente política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos falantes uma «ortografia unificada», que, dizem, garante a «expansão da língua» e o seu «prestígio internacional». Mas a expansão da língua passa por uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a «língua de Camões», que transformou o Brasil numa potência.
Não é este «acordo» que vai trazer expansão e prestígio ao português. Contenta uns «acadêmicos espertos e parlamentares obtusos», como escreveu um colunista brasileiro, e alguns editores, que têm bom dinheiro a ganhar com esta negociata. Mas é difícil imaginar que alguém acredite que vem aí uma «unificação da língua» só porque se legislou uma «unificação da grafia». Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal, diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a perguntar «oi?», pois não percebeu metade. E isso não tem problema algum, a «lusofonia» não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram «bué» e «guterrismo».
É significativo que o próprio «acordo» reconheça o fracasso do projecto de «unificação da língua». Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes iluministas, é paisagem]. Pior ainda, introduzem uma “grafia facultativa” que estabelece como termos lícitos tanto «electrónica» como «eletrónica», «electrônica» ou «eletrónica». O linguista António Emiliano deu-se ao trabalho de enumerar em livro os erros, contradições, imprecisões e dislates desta lei iníqua. Leiam-no. E não digam que ninguém avisou.
A minha recusa deste «acordo» não é casuísta nem temperamental. Não se trata apenas de não gostar de ver os espectadores transformados em bandarilheiros «espetadores»; de não perceber como é que os habitantes do «Egito» não são «egícios»; de ficar estupefacto com o «cor-de-rosa» com hífen e o «cor de laranja» sem hífen; de prever os imparáveis espalhanços de um «para» do verbo «parar» que perde o acento e talvez o assento. É isso mas é mais que isso: eu discordo veementemente do critério fundamental do «acordo»: a primazia da fonética sobre a ortografia.
É verdade que todos falamos antes de sabermos ler e escrever, mas quando aprendemos essas competências sofisticadas interiorizamos uma língua diferente da falada, que nalguns casos nem tem exacta correspondência fonética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica das palavras, uma forma que memorizamos e que nos acompanha a vida toda, de modo que nunca mais lemos letra a letra, mas reconhecemos de imediato uma grafia aprendida há muito, «antiga», sim, muito antiga. A ortografia não é uma transcrição fonética, nem podia ser, dadas as variantes do português falado. Ou nas pronúncias regionais. Como escreveu Emiliano, não vamos criar uma «ortografia do Alto Minho» só porque a pronúncia de Caminha é diferente da pronúncia de Cascais. Ou de Curitiba.
E não me digam que são pouquíssimas as palavras alteradas: procure quantas vezes neste jornal aparece ação, ator, atual, coleção, coletivo, diretor, fato, letivo, ótimo, e repare que são algumas das mais usadas. É por isso que o cavalo de Tróia das “consoantes mudas” deve ser denunciado. Em primeiro lugar porque não são mudas coisíssima nenhuma: abrem as vogais precedentes, e numa língua danada por fechar vogais. Depois, porque não são inúteis, ajudam a distinguir termos homógrafos e indicam a etimologia de palavras afins. Fazem sentido, ao contrário do «acordo».
Dizem os acordistas que a nova ortografia «simplifica» e «facilita a aprendizagem». Toda a gente sabe o que significa «facilitar a aprendizagem», e os resultados que isso deu no ensino. E se a intenção é «simplificar», que tal escrevermos todos em linguagem de telemóvel? Por mim, continuarei antigo.

RR - Mas que embirração!

Nuno Serras Pereira








1. A rádio renascença (rr) no seu verosímil perseverante propósito de confundir, deformar, e escandalizar os católicos tem vindo a referir-se às pessoas do mesmo sexo que desconchavadamente se emparelharam como casais homossexuais. Não faço ideia se a rr se justificará com o facto de existir uma «lei» promulgada que concede a possibilidade de que, após a realização de um ritual civil, duas pessoas do mesmo sexo sejam declaradas casadas. Seja como for convirá recordar a esta emissora delambida algumas verdades elementares:
a) O casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma impossibilidade antropológica cujos fundamentos são ontológicos.
b) Nem o estado nem a rr têm o poder de mudar a substância das coisas. O pensamento de que uma coisa pode passar a ser outra ao sabor da nomeação que lhe dêmos não passa de uma superstição mágica sem qualquer fundamento na realidade. O facto das mentes relativistas e niilistas actuais regredirem a essa crença primitiva não lhe concede validade alguma. As coisas são o que são independentemente da nossa opinião ou decisão. E há que dizer-se das coisas aquilo que elas são.
Só Deus pode criar a partir do nada. Somente Ele, pela Sua Palavra Omnipotente, pode transformar a substância do que existe, como acontece, por exemplo, na transubstanciação eucarística do pão no Seu próprio Corpo, Sangue, Alma e Divindade.
Se num futuro que se afigura cada vez mais provável os deputados legislarem e o presidente promulgar uma lei consagrando o pseudocasamento intergeracional (de pedófilos), ou o pseudocasamento interespécies (entre pessoas e animais) a rr estará disposta a noticiá-los com o nome de casamento? Infelizmente, a partir dos dados que temos, tudo parece indicar que sim.
Os proprietários da rr, o Episcopado português, não conhecem o mandato da Escritura: «Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar … » (Rom 12, 2)?
c) Toda e qualquer «lei» iníqua, assim o ensinam a Tradição viva da Igreja e a Lei Moral Natural, pelo facto de ser injusta, pura e simplesmente, não é lei: «A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um acto de violência» (S. Tomás d’ Aquino, cit. in João Paulo II, O Evangelho da vida, nº 72). A autoridade que a estabelece « … perde a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico.» (João Paulo II, O Evangelho da vida, nº 71); «A autoridade (de facto) é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. ... Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder.» (João XXIII, cit. in Idem). «Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objecção de consciência … no caso de uma lei intrinsecamente injusta … nunca é lícito conformar-se com ela … .»(João Paulo II, O Evangelho da vida, nº 73).
2. Mas que embirração será esta que a rr, «emissora católica portuguesa», tem sistematicamente com a Lei Moral Natural e com a Doutrina da Igreja?