quarta-feira, 28 de setembro de 2016


Um «novo vocabulário»

para uma «pastoral revolucionária»


Revista Catolicismo, 26 de Setembro de 2016

A reviravolta dos dois Sínodos dos Bispos sobre a família e da Exortação Apostólica Amoris laetitia, do Papa Francisco. Mudanças na linguagem e o emprego de palavras-talismã numa nova pastoral relativista e permissiva incapaz de iluminar os que erram, converter os pecadores e solidificar os fundamentos da instituição familiar.

O debate que animou os dois últimos Sínodos dos Bispos sobre a família (2014 e 2015) tem suscitado reacções opostas, mas os documentos publicados não avançaram propostas concretas sobre como curar os males da vida matrimonial e doméstica. Alguns comentaristas concluíram que os Sínodos não mudaram nada de substancial. No entanto, a Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, recentemente publicada pelo Papa Francisco, propõe explicitamente uma nova abordagem global da pastoral familiar.

Para termos uma opinião abalizada que pudesse esclarecer a questão, entrevistamos o estudioso italiano Guido Vignelli [foto ao lado], residente em Roma, director durante 20 anos do Projecto SOS Jovens e ex-membro da Comissão sobre a Família junto à Presidência do Conselho de Ministros da Itália. Recentemente ele escreveu o livro intitulado Uma revolução pastoral – Seis palavras-talismã no debate sinodal sobre a família [foto no alto], precisamente sobre os problemas suscitados pelas palavras, ideias e tendências emergentes após os dois Sínodos. A obra está sendo divulgada em três línguas pela TFP italiana, e uma edição brasileira está a ser preparada.

Guido Vignelli visa sistematicamente a realidade. Vai buscá-la no fluxo das modas sempre em mudança, no curso das ideias em circulação, no estrépito dos acontecimentos actuais. A sua acuidade penetra a modernidade com os seus alegres enganos e manifestações optimistas. Visão da realidade é virtude cada vez mais rara, seja nos livros, seja no jornalismo. Prevalece de modo geral o «pensamento único», o famoso «politicamente correcto».

Mostra nas suas obras, subjacente à euforia moderna, a profunda insatisfação do homem contemporâneo, consequência do facto de se ter libertado de Deus e menosprezado a sua Lei. Também aborda o tema dos malefícios da televisão e a sua acção brutal, particularmente sobre a infância. Os seus escritos sobre técnicas modernas têm aceitação sobretudo nos meios católicos. Visam devolver à sociedade a felicidade perdida pelo afastamento da Igreja.

Os erros profundos na Igreja atingem hoje graus paroxísticos. Os fiéis são constrangidos em massa a adoptar uma «nova mentalidade» e a ter a salvação eterna como fruto apenas da «boa consciência», sem consideração pela lei moral. Uma alegada sinceridade de sentimento tem a primazia sobre a noção de pecado. Pecado? Este é tido como um conceito superado.

Nesta entrevista, Guido Vignelli, a propósito do seu livro Uma revolução pastoral, analisa um método insidioso de penetração de erros actuais na Igreja com o fim de destruir a moral básica da instituição familiar. Ferramenta essencial desse método são as «palavras-talismã», cuja magia mediática penetra os espíritos e até importantes documentos do magistério eclesiástico. Esta obra de Vignelli inspira-se na análise profunda da realidade efectivada por Plinio Corrêa de Oliveira na sua obra Baldeação Ideológica Inadvertida e Diálogo, obra básica do pensamento católico contra-revolucionário, da qual este autor italiano é o grande divulgador na Europa.

Catolicismo — Que tipo de mudanças são esperadas
na nova pastoral familiar?

Guido Vignelli — Alguns afirmam que essas mudanças vão modificar a pastoral familiar não na sua substância, mas apenas no seu «estilo» de expressar-se e de agir. Cumpre objectar-lhes que é precisamente este campo delicado e escorregadio que causará problemas. As mudanças na linguagem e na prática podem ser decisivas porque, quando se modifica a maneira de expressar e de agir, as coisas tendem a mudar.

Tanto os sínodos episcopais quanto a posterior a Exortação pontifícia Amoris laetitia propuseram «um novo léxico que revoluciona a pastoral», como advertiu «Avvenire» — jornal da Conferência Episcopal Italiana (24-4-16). Portanto, pode-se esperar que esse «léxico revolucionário» exercerá influência cada vez maior, não só na questão familiar, mas também em toda a vida eclesial.

A mensagem sinodal e a papal impõem-se não tanto pelo seu diagnóstico e a sua terapia, quanto pela sua intenção explícita de promover uma «conversão pastoral» da linguagem e da prática que favoreça uma «inversão de perspectiva» não só na vida familiar, mas também eclesial, como disseram os cardeais que apresentaram a Amoris laetitia à imprensa. A «conversão pastoral» consiste em adequar critérios, métodos e meios eclesiais à pretensão do homem moderno de agir seguindo apenas a própria consciência subjectiva e satisfazendo as exigências permissivas daí resultantes. A «inversão de perspectiva» consiste em nunca colocar os meios ao serviço do fim, mas o fim ao serviço dos meios, ou seja, em colocar a verdade e as leis evangélicas ao serviço da nova pastoral eclesial, o que vale também para o direito canónico e inclusive para os Sacramentos.

Para esse fim, surgiu a perigosa tendência de encarar a verdade evangélica sobre o casamento e a família como se fosse «um modelo ideal», ou seja, uma bela teoria, mas muito abstracta e difícil de alcançar, que depois vai adequar-se às exigências pastorais exigidas pelas situações concretas. Por isso se prevê avaliar e resolver essas situações recorrendo a atenuantes morais e excepções, derrogações e licenças jurídicas. Desta forma, contudo, o mencionado modelo evangélico perde o seu rigor ideal, e com ele também a sua força de sedução e atracção; além disso, a acumulação de excepções à regra acaba frustrando a própria regra, deslizando-se na insegurança jurídica.


Catolicismo — Qual é o papel dessa nova linguagem eclesial
nas mudanças previstas?

Guido Vignelli — A nova linguagem sinodal é dominada por certas palavras-chave que, mediante máximas correlativas, fórmulas e slogans, definem os problemas examinados e orientam as soluções propostas, de modo a sugerir uma mudança substancial de toda a prática eclesial. Em resumo, essas palavras-chave são neutras e de uso comum. Na prática, no entanto, elas estão inseridas num contexto que lhes confere um significado enganoso e as faz exercer uma perigosa influência sobre os que as usam, manipulando a sensibilidade e a mentalidade dos fiéis através de uma técnica de persuasão psicológica oculta, análoga àquela utilizada pelos sistemas de propaganda de massas, por exemplo, na publicidade.

É por isto que tais palavras nós as podemos definir como «palavras-talismã», comparando-as com as fórmulas mágicas. Ou seja, elas não se limitam a exprimir o que significam (uma ideia, um valor, um julgamento), mas tendem a realizar aquilo que significam, isto é, a produzir um efeito (uma escolha, uma posição, um comportamento) capaz de seduzir e atrair um ouvinte ingénuo, distraído ou conformista. Quem usa tais palavras-talismã é depois empurrado inconscientemente para uma determinada direcção, arriscando a ser «baldeado» de uma posição antiga e rigorosa para uma nova e permissiva.

Como se sabe, esse tipo de palavras e o mecanismo subtil desencadeado por elas foram analisados com acuidade pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira na sua obra intitulada Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo (1965), um ensaio de importância histórica e profética, muitas vezes surrupiado por estudiosos e apologistas por acaso, mas quase nunca citado como fonte autorizada.

O Sacramento da Eucaristia, instituído por Nosso Senhor na Santa Ceia,
hoje é concedido a pessoas sem prévia conversão e reparação, ao pecador impenitente.

Catolicismo — Quais são as «palavras-talismã» que emergiram
dos dois Sínodos?

Guido Vignelli — De acordo com protagonistas e observadores oficiais, as palavras-talismã dominantes no debate sinodal e confirmadas por Amoris laetitia foram as seguintes: pastoral – misericórdia – escuta – discernimento – acompanhamento – integração. Essas seis palavras repetem-se com frequência nos actos oficiais dos dois Sínodos: pastoral (90 vezes), misericórdia (48), discernimento (45), acompanhamento (102); a palavra integração ocorre apenas 24 vezes, mas, se a unirmos à palavra que a pressupõe, ou seja, acolhida, repetida 74 vezes, juntas formam um total de 98. Houve outras palavras-chave recorrentes, como complexidade, aprofundamento, desafio, mas que não parecem ter a importância das precedentes.

Estas palavras-talismã estão relacionadas entre si. A nova pastoral exige tratar com misericórdia as situações conjugais e familiares imorais, que não devem por isso ser julgadas eticamente, mas através da escuta das suas experiências e necessidades, a fim de discernir em todas o que é «autêntico», a fim de  acompanhá-las em direcção a um processo de acolhimento, obtido com a plena integração na comunidade eclesial e na vida sacramental.

Catolicismo — Qual é a impostação da nova pastoral?

Guido Vignelli — A nova pastoral familiar é baseada no pressuposto de que os agentes pastorais devem limitar-se a utilizar apenas métodos e meios de «diálogo», da persuasão e do exemplo, renunciando à reprovação, à denúncia, para a condenação e punição do pecador. Acredita que métodos penais não são misericordiosos. Consequentemente, mesmo quando a culpa é obstinada, pública e escandalosa, nenhum pecador pode ser marginalizado ou expulso da comunidade da Igreja.

Em concreto, o pecador não é tanto perdoado quanto escusado, aduzindo-se atenuantes justificatórias, por exemplo, o facto de viver numa situação matrimonial ou familiar supostamente insanável. Então, tende-se ser misericordioso, não só com o pecador (que sempre pode converter-se), mas também com a sua situação pecaminosa (que nunca pode converter-se, mas deve simplesmente desaparecer); não se limita a «odiar o pecado e amar o pecador», como afirma Santo Agostinho, mas chega-se a justificar o pecado e a absolver o pecador impenitente, concedendo-lhe até o acesso à Sagrada Comunhão sem prévia conversão e reparação. Tal misericórdia é contrária ao ensinamento da Igreja, inclusive o da encíclica Dives in Misericordia de João Paulo II.

Este permissivismo, que ontem era concedido apenas aos que erravam, estende-se hoje aos pecadores públicos. Se esta abordagem liberal fosse aplicada com rigor, nenhuma sociedade poderia conservar-se por muito tempo, nem sequer a da Igreja, que é divina, porque os tribunais tornar-se-iam ilícitos e, portanto, seriam abolidos.

A abordagem metodológica está em suma na exigência pastoral e no primado da misericórdia. O problema é que essas duas palavras-chave foram falsificadas no seu significado e traídas na sua missão. Na ânsia de diagnosticar as situações pecaminosas absolvendo-as da devida condenação moral, a pastoral tende a eludir a verdade revelada; na ânsia de curar essas situações poupando-as dos inevitáveis sofrimentos, a misericórdia tende a escapar da justiça divina. O resultado é uma pastoral relativista, incapaz de iluminar os que erram e uma misericórdia permissiva incapaz de converter os pecadores.

Quanto mais um cristão se obstina em viver num estado público de pecado,
violando gravemente os mandamentos relativos à fidelidade e à castidade matrimonial,
pode lícita e canonicamente considerar-se «simul justus et pecador»
(«que é pecador justificado»), como pretendia o heresiarca Lutero.

Catolicismo — Qual é a teoria implícita nessa nova pastoral?

Guido Vignelli — Se consideradas nas suas relações, as mencionadas palavras-chave se explicam e se apoiam mutuamente, sugerindo uma nova metodologia que nos leva a passar de um conceito rigoroso a um permissivo, não só da pastoral doméstica, mas também da moral familiar. A avaliação moral é de facto posta na dependência dos tempos, lugares, pessoas e situações, com base, portanto, em critérios nunca absolutos (ou seja, universais e necessários), mas relativistas (ou seja, particulares e subjectivos); os próprios conceitos de «mal absoluto» e «estado de pecado» são implicitamente rejeitados como abstractos e rigoristas. O que leva ao seguinte paradoxo: quanto mais um cristão se obstina em viver num estado público de pecado, violando gravemente os mandamentos relativos à fidelidade e à castidade matrimonial, pode lícita e canonicamente considerar-se «simul justus et pecador» («que é pecador justificado»), como pretendia o heresiarca Lutero.

A nova pastoral pressupõe e insinua uma teoria moral relativista e permissiva, semelhante à «nova moral» denunciada no seu tempo por Pio XII: afirma-se que, «libertada das subtilezas sofísticas do método tradicional, a moral seja reconduzida à sua forma originária e remetida à inteligência e à determinação da consciência individual. […] A «nova moral» afirma que a Igreja, em vez de fomentar a lei da liberdade humana e do amor, pelo contrário leva, quase exclusivamente e com excessiva rigidez, à firmeza e intransigência das leis morais cristãs, recorrendo com frequência àqueles «sois obrigados» e «não é lícito» que têm muito sabor de um pedantismo desalentador. […] Com o resultado de que a acusação de dureza opressora, do movimento «nova moral» contra a Igreja, vai na verdade atingir em primeiro lugar a própria Pessoa adorável de Cristo» (Pio XII, Rádio Mensagem de 23 de Março de 1952, por ocasião do Dia da Família).

Prepara-se, portanto, uma revolução pastoral no sentido relativista e permissivo. É uma revolução no sentido relativista, porque o diagnóstico das situações familiares se baseia não na avaliação moral objectiva delas, mas em detectar a experiência psicológica subjectiva e prever as consequências práticas, com o perigo de fazer a consciência perder o sentido de pecado, já tão obnubilado. Com efeito, não se fala mais de «situações imorais» (como o concubinato), nem tampouco de «situações irregulares», mas apenas de «situações complexas» ou «difíceis». É também uma revolução no sentido permissivo, porque a terapia para tratar dessas situações se reduz ao uso de paliativos e anestésicos que, longe de eliminar as causas do mal, aliviam-lhe apenas os sintomas, ou seja, as consequências dolorosas, com o resultado de iludir o restabelecimento e tornar crónico o vício. Desta forma, a pastoral familiar é reduzida a uma psicologia ou sociologia da família semelhante à laicista.

Catolicismo — Há também motivos de uma esperança não sentimental, mas racional, quanto ao futuro da família?

Guido Vignelli — Não obstante a mesma análise sinodal admitir que a actual situação familiar global é totalmente desastrosa, pesquisas sociológicas e estatísticas também revelam alguns sinais de esperança quanto ao futuro. Na verdade, apesar de as autoridades tornarem cada vez mais difícil para os jovens constituir família, opondo obstáculos culturais, políticos e económicos inimigos da castidade, da estabilidade e da procriação, o desejo de família está crescendo precisamente entre as últimas gerações; isto também se aplica à nobre nação brasileira. Talvez seja até para perverter essa saudável tendência juvenil que a propaganda revolucionária tenta distorcer o conceito de família, tornando-a «pluralista», ou seja, introduzindo nela todas as formas possíveis de convivência (inclusive a homossexual). Mais uma razão para impelir os cristãos a defender a verdadeira identidade e definição de família. Trata-se da própria sobrevivência da humanidade, como também da Igreja.