domingo, 23 de dezembro de 2012

A lei de identidade de género e os limites
da omnipotência do legislador (4)

Pedro Vaz Patto

Os limites da omnipotência do legislador

É tempo de retomarmos a análise dos diplomas em apreço, relativos à possibilidade de mudança de registo oficial do sexo de uma pessoa contra o sexo biológico e em função do «sexo social desejado».

Poderá dizer-se que não têm consequências directas danosas e se limitam a satisfazer um desejo compreensível das pessoas transexuais.

Mas é, desde logo, duvidoso que seja desta forma que se resolvem os problemas das pessoas transexuais. A lei criará apenas uma ficção, pretendendo ocultar uma discrepância que não deixará de existir e que, por isso, não deixará de causar os distúrbios que lhe são inerentes.

E, sobretudo, inovações como a que decorre destes diplomas põem em causa princípios fundamentais relativos à função do legislador. São estes princípios, mais do que consequências sociais directas, que estão em jogo.

Inovações como esta estão longe de ser ideologicamente indiferentes ou anódinas. Leis como esta servem um propósito de afirmação ideológica, a afirmação da ideologia de género, inserindo-se num processo mais vasto de revolução de mentalidades que vem de cima e se impõe à mentalidade comum. Admitir que a Lei sirva propósitos destes, numa pretensa engenharia social, revela tendências mais próprias de um Estado totalitário do que de um Estado respeitador da autonomia da sociedade civil.

O que se pretende é a instrumentalização da Lei ao serviço da prevalência da vontade subjectiva sobre a realidade objectiva. Trata-se de fazer prevalecer «como última unidade de medida apenas o ‘eu’ e os seus desejos», para usar a expressão com que o cardeal Ratzinger, no discurso de abertura do Conclave de 18 de Abril de 2005, caracterizou aquilo a que chamou a ditadura do relativismo. Dir-se-à que a transexualidade não é uma escolha arbitrária, que é também ela uma realidade psicológica que se impõe à própria pessoa. Poderá ser assim nalguma medida. No entanto, a vontade não deixa de ser determinante na definição do «sexo social desejado» a que os diplomas em apreço dão relevância. E os pressupostos da ideologia de género que lhe estão subjacentes, que sobrepõem o desejo a qualquer forma de heteronomia objectiva, deixam aberta a porta a situações de verdadeira arbitrariedade.

Desta forma o legislador atribui-se uma prerrogativa nova, uma pretensão de omnipotência que derruba uma barreira até aqui intransponível, a barreira da própria realidade objectiva. O legislador constrói uma sua própria realidade contrária à realidade objectiva. E também esta pretensão é reveladora de tendências totalitárias. Como afirmou o Papa Bento XVI num dos discursos acima citados, a «lei natural é, em definitivo, o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica». Leis que consagram a ideologia de género desprezam por completo qualquer conceito de natureza ou lei natural. Por isso, derrubam a mais potente barreira à omnipotência do legislador, o «único baluarte válido» contra o arbítrio deste.

Vem à mente a este propósito o célebre dito que tradicionalmente se usava para exprimir a extensão dos poderes do Parlamento inglês: «pode fazer tudo excepto transformar um homem numa mulher, ou uma mulher num homem». É claro que num Estado de Direito, nem mesmo um Parlamento democraticamente legitimado, nem mesmo a mais absoluta das maiorias, pode fazer tudo. Está sempre limitado pelo direito natural, donde decorrem, antes de mais, os direitos fundamentais da pessoa humana. Mas agora parece que se pretende que nem sequer a realidade objectiva da diferença sexual biológica sirva de barreira à omnipotência do legislador. Pretende-se que os Parlamentos passem a poder «transformar um homem numa mulher ou uma mulher num homem».

FIM
 

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