(Teolinda Gersão publicou ontem este texto no Facebook)
Redacção –
Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua
Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já
nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada,
até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo,
isto: No ano passado, quando se dizia «ele está em casa», «em casa» era o complemento
circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. «O Quim está na
retrete» : «na retrete» é o predicativo do sujeito, tal e qual como se
disséssemos «ela é bonita». Bonita é uma característica dela, mas «na retrete»
é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a
predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao
rabo.
No ano passado havia
complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava.
Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um «complemento oblíquo».
Julgávamos que era o simplex a
funcionar: Pronto, é tudo «complemento oblíquo», já está. Simples, não é? Mas
qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de
uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou
directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e
os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo
é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários
pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos
e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o
rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer
no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser:
Algumas árvores secaram, «algumas» é um quantificativo existencial, e a
progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos
«O Zé não foi ao Porto», era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação
apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos
«A rapariga entrou em casa. Abriu a janela», o sujeito de «abriu a janela» era
ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a
ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelos vistos no ano passado ensinou coisas
erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da
gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem
faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames
somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo
excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de
gramar até ao 12.º ano estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho
demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e
deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e
subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia,
meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e
interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto,
macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas
conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões
assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a
raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não
servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a
começar por t, com 6 letras e a acabar em «ampa», isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até
de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para
eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos
o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos
à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem
certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também
já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até
se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e
reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem
de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a
detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre
sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só
agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer
maneira vou ter zero. E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora parece
que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não
tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de
superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A
culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se
escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos
puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem
nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E
é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou
deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde
está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra,
enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8.º ano,
setôra, sem ofensa para si, que até é simpática.»
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