Pedro Vaz Patto
As propostas iniciais de legalização da eutanásia
começam por apresentar esta prática como um recurso excepcional e estritamente
enquadrado, como corolário do respeito escrupuloso pela liberdade de quem a
pede. Que tal objectivo seja atingido, não resulta, porém, das experiências dos
países que enveredaram por tal legalização.
Há cerca de dois anos, e a propósito do décimo
aniversário dessa legalização na Bélgica, foi publicado um manifesto, Dez
anos de eutanásia, um feliz aniversário?, subscrito por médicos de
diferentes especialidades, mas também juristas, filósofos e teólogos de várias
religiões.
Aí se afirma que a legalização da eutanásia não
envolve apenas o respeito pela liberdade individual. Representa o aval da
comunidade e do corpo médico à opção em causa. A quebra de um interdito
fundamental («não matar») que estrutura, como sólido alicerce, a vida
comunitária, não pode deixar de afectar a confiança no seio das famílias, entre
gerações e na comunidade em geral; e, particularmente, a confiança no corpo
médico. Fragiliza, por outro lado, os mais vulneráveis, sujeitos a pressões, em
grande medida inconscientes, que os levam a sentir-se obrigados a pedir a
eutanásia para não serem um peso para a família e para a sociedade.
O manifesto também confirma o receio de que a
quebra desse interdito estruturante nunca poderá ter efeitos limitados e
contidos. A noção de «sofrimento insuportável» a que a lei belga recorre (como
as de outros países) é subjectiva e tem permitido estender o seu campo de
aplicação a sofrimentos psíquicos que não se enquadram na noção de «patologia
grave e incurável» a que a legalização supostamente se restringiria.
Suscitaram compreensível clamor os casos de uma
mulher que sofria de anorexia nervosa e o de uma outra que sofria de depressão
(doenças que podem ser tratadas); o de dois irmãos gémeos, surdos de nascença
em vias de ficar cegos; ou a de um professor de medicina com 95 anos, que não
era doente terminal, nem sofria de «dor insuportável».
E, agora, foi aprovada, também na Bélgica, a
extensão da legalização da eutanásia a casos de crianças (cuja maturidade para
decidir seja atestada por psicólogos) e de dementes (que tenham manifestado a
sua vontade anteriormente, no exercício das suas faculdades). Num e noutro
caso, o respeito pela «sacrossanta» liberdade de quem pede a eutanásia (que
nunca seria, de qualquer modo, aceitável quando se atinge a raiz e o fundamento
da própria liberdade, que é a vida) é posto em segundo plano.
Dá-se relevo à manifestação de vontade de uma criança,
num âmbito de absoluta irreversibilidade, quando não é dado esse relevo, por
incapacidade, em âmbitos de muito menor importância (comprar uma casa ou gerir
uma conta bancária, por exemplo). Um significativo grupo de pediatras afirmou
não ser possível em caso algum considerar essa manifestação de vontade de uma
criança verdadeiramente consciente e genuína.
E, no caso de pessoas dementes, também se dá relevo
a uma manifestação de vontade não actual, quando é sabido que muitas vezes a
vontade de uma pessoa se altera quando a doença progride e o apego à vida vem
ao de cima (ou seja: nunca pode haver a certeza de que, no momento da morte,
fosse essa a vontade real da pessoa demente).
No caso de pessoas dementes, pode facilmente
suceder que a motivação do pedido não seja o previsível sofrimento dessas
pessoas (nestes casos, o sofrimento atingirá mais os familiares do que o
próprio doente, por este não se aperceber da sua doença), mas antes a vontade
de não fazer recair sobre esses familiares um fardo difícil de suportar (fardo
que é inegável). E o mesmo pode suceder em relação ao pedido de crianças, que,
até de forma inconsciente, podem sentir que são um peso para os pais
(disseram-no também, a propósito da nova legislação belga, vários pediatras).
Pode, assim, abrir-se a porta a uma morte provocada já não pela compaixão para
com o doente, mas para que as pessoas ao redor deste se livrem de um fardo
difícil de suportar.
Estas mesmas consequências (a progressiva extensão
da eutanásia, incluindo a situações de doentes incapazes de manifestar a sua
vontade) já se haviam notado na mais antiga experiência da Holanda, como já
resultava do célebre relatório Remmelink, de 1991. E onde também já se aceita,
desde há alguns anos, a eutanásia de crianças.
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