sexta-feira, 4 de abril de 2014

Ratos

José Miguel Pinto dos Santos

Será que já não há ratos em Portugal? Ou será que estão tão gordos que já nem parecem ratos?

Os contactos entre portugueses e japoneses ao longo dos séculos apresentam dos aspectos mais coloridos nas histórias das duas nações.

É verdade que houve longos períodos em branco, de ignorância mútua. Mas também existiram períodos a verde, cheios de esperanças e expectativas. Viveram-se épocas douradas e cor-de-rosa, de comércio e cultura. Sofreram-se episódios tingidos a vermelho, de escaramuças armadas e martírios. E passaram-se ocorrências negras. Ou roxas, se o roxo for a cor da vergonha.

Em 1903, Murakami Naojiro (1868-1966) descobriu no Lyceu Passos Manuel, em Lisboa, uma Doctrina Christan. Este livro, raríssimo, tinha sido impresso em Amakusa em 1592. Culturalmente era um volume valiosíssimo: era a primeira tradução existente de uma obra numa língua europeia para o japonês, um dos primeiros livros escritos em japonês com letras latinas e também um dos primeiros a ser impresso, no Japão, com tipos móveis. Este volume tinha sido oferecido por Alessandro Valignano (1539-1606), um dos responsáveis pela missão jesuíta no Extremo Oriente, a D. Theotónio de Bragança (1530-1602), que por sua vez o tinha doado a um convento de cartuxos. Os bons frades zelaram pela sua integridade durante dois séculos. O eles não saberem japonês terá contribuído para o seu parco uso e boa conservação. A seguir à revolução liberal, no séc. XIX, o Estado expropriou-lhes tudo o que tinham e palmou-lhes o livro, que passou para o Lyceu Nacional, criado por decreto do ministro Passos Manuel (1801-1862) em 1836.

Alertado pela descoberta de Murakami, Jordão de Freitas (1866-1950) inspeccionou a obra uns tempos depois. Em 1910 o Lyceu foi transferido para as belas e imponentes instalações actuais, e inaugurado com muita pompa e circunstância a 9 de Janeiro de 1911. Não era caso para menos, atendendo a ser a primeira grande obra pública feita pelo novo regime. Quando, passados alguns meses, Freitas visita as novas instalações e pede para ver o livro, foi-lhe laconicamente dito por um funcionário cinzento: «Já não o temos, os ratos comeram-no».

Esta Doctrina Christan reapareceu em 1913, no catálogo de um livreiro madrileno. Foi vendida a um americano anónimo e, em 1915, é oferecida para venda no catálogo de Martinus Nijhoff, famoso livreiro na Haia. Em 1917 foi comprada pelo barão Iwasaki Hisaya (1865-1955), um magnata ligado ao grupo Mitsubishi, que o passou ao Toyo Bunko, uma biblioteca, por ele fundada, em Tóquio – onde ainda hoje se encontra, em bom estado de conservação.

Será que já não há ratos em Portugal? Ou será que estão tão gordos que já nem parecem ratos?





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