Teolinda Gersão,
Junho, 2012
Tempo de exames no secundário, os meus netos
pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu
acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são
minhas, mas as ideias são todas deles.
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma
vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de
português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a
mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando
se dizia «ele está em casa», «em casa» era o complemento circunstancial de
lugar. Agora é o predicativo do sujeito. «O Quim está na retrete»: «na retrete»
é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos «ela é bonita».
Bonita é uma característica dela, mas «na retrete» é característica dele? Meu
Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e
agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais
de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só
há o desgraçado de um «complemento oblíquo». Julgávamos que era o simplex a
funcionar: Pronto, é tudo «complemento oblíquo», já está. Simples, não é? Mas
qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de
uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou
directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e
os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo
é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários
pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos
e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o
rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer
no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser:
Algumas árvores secaram, «algumas» é um quantificativo existencial, e a
progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos «O Zé não foi ao
Porto», era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um
elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos «A rapariga entrou em
casa. Abriu a janela», o sujeito de «abriu a janela» era ela, subentendido.
Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que
aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelos vistos no ano
passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo,
embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano
passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem
chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou
bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e
astronauta, e tenho de gramar até ao 12.º estas coisas que me recuso a
aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de
adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico,
catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico,
hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica,
apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto,
hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais,
implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um
dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos
bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para
esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma
tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em
«ampa», isso mesmo, claro).
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque
me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está
certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por
exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me
erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser
por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto
respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao
calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens,
ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos
chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar
ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas
chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que
estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou
ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora
parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil
não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de
superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A
culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se
escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos
puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem
nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E
é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na
retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática?
Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo
do sujeito.
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