«Uma excelente análise, por Acílio Estanqueiro Rocha, Professor Emérito da
Universidade do Minho, Departamento de Filosofia, Instituto de Letras e Ciências
Humanas, sobre a Insegurança Ortográfica que o AO/90 gerou entre
aqueles que aceitaram, sem pestanejar, a imposição ilegal e inconstitucional
deste monumental engano.»
Acílio Estanqueiro Rocha
1 — Já
afirmámos que o Acordo Ortográfico veio criar enorme «insegurança
ortográfica», onde esta antes não existia; subestimaram-se vários
pareceres solicitados que alertavam para isso mesmo. Aliás, no ano passado, o
Parlamento recomendou ao Governo a constituição de um grupo de trabalho para
acompanhar o processo de aplicação do AO, com elaboração de relatório; que se
saiba, nem grupo nem relatório.
Mostrámos
já que a obsessão pela unificação ortográfica criou, em vez das duas, três
grafias, patente em exemplos simples (portuguesa/brasileira):
aspeto/aspecto,
detetar/detectar,
receção/recepção,
conceção/concepção,
deceção/decepção,
perceção/percepção,
espetador/espectador,
perentório/peremptório,
tática/táctica,
espetro/espectro,
cato/cacto,
perspetiva/perspectiva,
interceção/intercepção,
etc.
Assim
se pretende que se escreva agora (em Portugal) «aspeto», «conceção»,
«perspetiva», que antes se escrevia (Portugal e Brasil) «aspecto»,
«concepção», «perspectiva», e que continua a ser «aspecto», «concepção»,
«perspectiva» (Brasil).
Não
entendo tamanha estultícia! Se eu escrever, por ex., a «receção do texto»
em vez de «recepção do texto», como evitar que o leitor não pense em «recessão»,
se é isso que ouve a toda a hora e sofre no seu vencimento ou pensão? Um
brasileiro, ao ler «receção», não entende…
Como
sabemos, a aprendizagem da ortografia não se faz só na escola: é um processo
quotidiano, multímodo, que envolve a memória visual; escrever «Egito»
causa calafrios: é um triste espectáculo, que já não tem espectadores mas «espetadores»
(a primeira vez que li, pensei em «espeto»). Aliás, como é sabido, as
grandes diferenças que separam as variantes portuguesa e brasileira da língua
não são ortográficas, mas são lexicais, semânticas e morfossintácticas.
2 —
Sobre as consoantes não pronunciadas, importaria evitar a homografia, por ex., «acto»/«ato»
(verbo), «corrector»/«corretor» (da bolsa), «óptico» (relativo à vista)/«ótico»
(relativo ao ouvido), sendo que, no Brasil, continua a escrever-se «óptico»;
seria também imprescindível evitar a homofonia (por ex., «intersecção» e
«intercessão»), como é necessário ainda evitar o fechamento vocálico («acção»,
«aspecto», «baptismo», «lectivo», etc.). Note-se que o português europeu está a
tornar-se, por vezes, dificilmente inteligível na oralidade, dada a tendência
para fechar as vogais. Já um linguista advertiu que «adoção» (de «adoptar»)
poderia conduzir à pronúncia de «adução» (de «aduzir»); este é um
problema grave: as próximas gerações tenderão a ler «setor», «receção»,
«deceção», etc., sem abrirem as vogais.
As
consequências gravosas do AO saltam à vista: ao contrário de outras alterações
ortográficas do século XX, este AO atinge aspectos estruturais da Língua
Portuguesa. Todo este processo tem sido, pois, arrogante e autoritário.
3 — A
sanha em simplificar (complicando) o português europeu, acaba por o desfigurar
como património que opera a comunhão entre gerações, reduzindo a língua a um
mero veículo de comunicação, a um artefacto instrumental, não atendendo ao
carácter consuetudinário e à estabilidade ortográfica que são dimensões
valiosas de identificação. A simplificação a todo o custo, a redução à pura
fonética, como se de uma experiência laboratorial se tratasse, é uma das
consequências mais nocivas do AO: é assim, por ex., que «acto» se torna «ato»;
se, no artigo anterior, demos o exemplo de «directo», veja-se, entre outros,
por ex., «acção», do latim «actio», «action» (em inglês), «action»
(francês), «Aktion» (alemão), «acción» (espanhol), «actiune»
(romeno).
Tal
afasta o Português europeu dessas línguas europeias românicas e germânicas
(incluindo o inglês). Por isso, o AO vai dificultar que alunos
portugueses aprendam (sem erros) línguas estrangeiras e que estudantes de
países europeus aprendam (sem erros) o Português.
Note-se
que na língua inglesa abundam palavras com consoantes e vogais não
pronunciadas, as «silent letters» – «dou(b)t», «forei(g)n»,
«ni(gh)t», «thou(gh)t», etc.
Ao
pretender-se que a grafia coincida com a «pronúncia», esquece-se que esta é
contingencial, variando de país para país, de região para região, de pessoa
para pessoa. Aliás, se nos orientássemos apenas por critérios fonéticos, deveríamos
escrever, por ex., «úmido» (como no Brasil), o que seria por demais
ridículo.
Não
conheço nenhum AO em nenhuma outra língua. Quem se preocupa com a unificação do inglês? E
há, pelo menos, dezassete variantes do inglês, meia dúzia do alemão, quinze do
francês e vinte do espanhol.
Trata-se
de mais uma originalidade da política portuguesa, própria de políticos
modernaços mas ignaros, pós-modernos, que não sabem o que é um livro; se citam
versos de um poema, é só ao jeito de tique decorativo.
Naturalmente
são indiferentes à estabilidade ortográfica – essencial na Língua –, como a
qualquer estabilidade (legislativa, fiscal, etc.), quando esta é apanágio de um
povo desenvolvido.
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