Alberto Gonçalves, Sábado, 27 de Dezembro de 2016
Numa tentativa de explicar a ascensão de Trump,
Seth MacFarlane, o criador de Family Guy, disse há tempos que o
lado dele, a esquerda, «tornou-se um pouco irracional quando é preciso separar
o trivial do profundo». E acrescentou: «Somos incapazes de distinguir as
injustiças das coisas que nos ofendem.»
A chatice é que as coisas que os ofendem são
imensas, e a sensibilidade aumenta a cada dia. Na América, por exemplo, pode
arruinar-se uma pessoa após publicar uma graçola «inconveniente» no Facebook.
MacFarlane lembra o caso de Justine Sacco, a
senhora que, durante uma viagem em 2014, deixou na Net piadas escritas em
Heathrow sobre o cheiro dos alemães, a dentição dos britânicos e a sida em
África. As primeiras ficaram impunes, mas a terceira levou a que, ao aterrar na
Cidade do Cabo, a ex-anónima de 30 anos descobrisse que era, mundialmente, o
ódio n.º 1 do Twitter. Descobriu também que perdera o emprego, o sossego e,
decerto, a possibilidade de uma vida decente.
Portugal ainda não atingiu tamanho grau de
desenvolvimento. Porém, vontade não falta. Na semana passada, Ricardo Araújo
Pereira resolveu queixar-se dos seus parceiros ideológicos, leia-se os
vigilantes atentos ao indivíduo que arrisca falar, mesmo que fora do contexto,
em «mariconços» ou «paneleirices». Os vigilantes não perderam tempo a atiçar a
fogueira. Nas «redes sociais» e em colunas de opinião, as criaturas do costume
e os anónimos que apreciam as criaturas do costume saltaram a atacar a
«intolerância» e o «preconceito» do Ricardo.
A fúria só não foi pior porque, afinal, o Ricardo
não é conotado com a «direita». E porque, apesar do seu talento, o Ricardo
partilha uma característica com os colegas sem talento do humor nacional:
nunca, ou quase nunca, belisca de facto as «causas» de estimação da seita. Ao
contrário do que berra uma devota do género, a questão não é que aqui não haja
a vocação persecutória que se encontra nos EUA. Por via da tradição indígena
para a submissão voluntária, o que não há é tantos pretextos para a
perseguição.
O que constitui um pretexto ou o que diferencia o
admissível do (ai que horror) inadmissível? No entender dos indignados
profissionais, o bom senso. E o que é o bom senso? É tudo o que não aflige
essas almas delicadas. Insultar cristãos, judeus, brancos, pretos (se
representantes da troika), homossexuais (se corridos da festa do Avante!),
mulheres (se avessas ao socialismo), aleijados (se ministros alemães) e até
cancerosos (se cônjuges de neoliberais) integra o bom, melhor, o óptimo senso. O resto é blasfémia.
Vale que, pelo menos enquanto não se nomear uma comissão para avaliar e punir os «excessos», o castigo dos blasfemos é o gozo da liberdade. E o prazer de rir do dedito acusatório dos Torquemadas de trazer por casa, profissão que parece atrair os maiores idiotas, perdão, retardados, perdão, doentes mentais, perdão, os mais especiais sujeitos que o País tem para oferecer. E tem muitos, embora ninguém os queira.
Vale que, pelo menos enquanto não se nomear uma comissão para avaliar e punir os «excessos», o castigo dos blasfemos é o gozo da liberdade. E o prazer de rir do dedito acusatório dos Torquemadas de trazer por casa, profissão que parece atrair os maiores idiotas, perdão, retardados, perdão, doentes mentais, perdão, os mais especiais sujeitos que o País tem para oferecer. E tem muitos, embora ninguém os queira.
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