Alberto
Gonçalves, Observador, 8 de Julho de 2017
É gente literalmente abjecta.
Perante a tragédia, decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram
desleixos maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as
câmaras, dão abraços.
Em Maio passado, gastei uma
quantidade inusitada de tempo a fazer o que nunca faço: reler as minhas
crónicas, no caso as que escrevi sobre o actual governo. O propósito era nobre,
e prendia-se com a publicação de um livro saído esta semana (pausa
publicitária: que mil familiares do dr. César lhe desabem na cabeça se ainda
não adquiriu tão magnífica obra). A experiência foi traumática, para dizer o
mínimo. Acompanhar a chamada «actualidade», de modo a garantir a coluna no
Observador, é convívio mais do que suficiente com os bandos que tomaram conta
disto. Não é clinicamente aconselhável reforçar a confraternização.
Os textos em causa,
muito menos por mérito do autor do que pelo evidente e portentoso demérito das
criaturas que mandam em nós, são premonitórios. Na medida em que as premonições
não primam pelo optimismo, são também deprimentes. Desde o primeiro momento, a
loucura intrínseca à aliança das «esquerdas», legitimada por um Presidente que
o artigo 328.º do Código Penal me impede de comentar, mostrou ao que vinha e
para que servia. O impressionante não é que o desastre se tenha confirmado com
estrondo, mas que durante ano e meio o desastre se confundisse, para uma
notável percentagem da população, com um relativo sucesso. A sucessão de
glórias circenses, da bola às cantigas, passando pelo Santo Padre ou pelo Santo
Guterres, não explica tudo. A submissão de boa parte dos «media» explica
um bocadinho. As benesses do turismo explicam outro bocadinho. A apatia do bom
povo e o júbilo das clientelas talvez expliquem o resto.
Certo é que, em poucas semanas,
alguma coisa mudou. Não mudaram o circo, os «media», o povo ou as
clientelas. Sucedeu apenas que, de repente ou nem por isso, a realidade
tornou-se impossível de negar. E a invencível nação que, de acordo com a
propaganda, maravilhava a Terra acordou destapada. E feia. Foram necessários
dezenas de cadáveres carbonizados e um picaresco (e aterrador) roubo de
armamento ao exército para expor, à revelia da maquilhagem e do «spin» e
das «boas notícias», a natureza da gente que ocupa o poder.
Não tem sido um espectáculo
agradável, excepto para apreciadores da incompetência, do descaramento e da
radical ausência de dignidade. É, em suma, uma gente literalmente abjecta.
Perante a tragédia, eles decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram
desleixos maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmaras,
dão abraços. Perante a culpa, acusam eucaliptos e furriéis. Perante o caos,
pedem avaliações de popularidade. Perante a obrigação, partem de férias para
Ibiza, a subjugar espanhóis com a barriga e um par de cuecas.
A propósito de Espanha, é revelador
que, apesar dos divertidos esforços dos «jornalistas» de cá para os calar,
sejam sobretudo os jornais de lá a contar-nos o que o «estrangeiro» vê quando
olha para aqui. Vê uma anedota perigosa, um manicómio em auto-gestão, uma
experiência do Terceiro Mundo às portas da Europa. E, naturalmente, assusta-se.
O susto não é descabido. Descabido é
o rumo que, com a sensatez habitual, o «debate» indígena ameaça seguir. A
oposição, se a palavra se aplica, andou uma semana a lamentar o colapso do
Estado e a reclamar a demissão dos ministros da Administração Interna e da
Defesa e o regresso do dr. Costa. Para quê? Não imagino. A substituição de duas
insignificâncias por duas insignificâncias iguaizinhas não alteraria nada. O
prolongamento das férias do dr. Costa por 20 ou 30 anos alteraria imenso.
Quanto ao Estado em frangalhos, em teoria só um socialista, assumido ou
dissimulado, se maçaria com o tema – na prática, o aborrecido é a devastação
principiar pelos únicos pedaços que, se calhar, convinha manter.
Entre o chinfrim, sobra um facto:
Portugal é governado por uma coligação de leninistas com sentido de
oportunidade e de oportunistas com nostalgias totalitárias. O que nos está a
acontecer é o percurso fatal em qualquer arranjo do género. Começa-se em euforia,
avança-se para a estupefacção, saltita-se para a raiva e termina-se em
desgraça, porque semelhante malformação não poderia terminar de maneira
diferente. O simbolismo da recente manifestação de apoio ao sr. Maduro, em
Lisboa, não é desprezível.
No mesmo dia em que os funcionários
da ditadura atacaram com marretadas pedagógicas o parlamento venezuelano, o
Conselho Português para a Paz e Cooperação, uma excrescência do PCP, desfilou a
regozijar-se com o sangue das vítimas. Na homenagem, participaram, cito,
«representantes da câmara municipal de Lisboa» e, quiçá em celebração de
Tancos, a Banda do Exército. Segundo o «Diário de Notícias», o belo evento «foi
perturbado por um incidente com um cartaz». O cartaz rezava «Venezuela Livre»,
e o portador acabou devidamente assaltado em prol da paz e, claro, da
cooperação.
Portugal não está nas mãos de
irresponsáveis, tradição a que aliás nos habituáramos: está nas mãos de
criminosos, por acção ou omissão. São eles que, a cada calamidade, juram que
podia ter corrido pior. E,
no que depender deles, há-de correr.
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