sexta-feira, 29 de dezembro de 2017
«Um Costa matou o Rei/ Outro Costa o Presidente/ E um Costa que eu cá sei/ Foi quem deu cabo da gente»
José Luís Andrade, Alameda Digital, 14 de Dezembro de 2017
O PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS
Cumprem-se hoje 99 anos sobre a morte de Sidónio Pais, o carismático republicano que Fernando Pessoa cognominaria como «o Presidente-Rei». No meio da maior comoção popular, as paredes apareceram pichadas com a quadra em epígrafe, em que se faziam referências ao regicida Alfredo Luís Costa, a José Júlio da Costa, o assassino de Sidónio, e, obviamente, a Afonso Costa que era visto por muitos não só como o inspirador de tais acções mas também o grande responsável pela situação caótica em que o país se encontrava. Quem era Sidónio e qual foi a sua acção carismática? Procuraremos traçar de seguida os apontamentos mais relevantes do seu reinado presidencial. Para maior comodidade para o leitor dividimos o ensaio em duas partes, publicando hoje apenas a primeira.
Como não podia deixar de ser, a repercussão dos ecos da mitificada «revolução de Outubro», a «madrasta» de todas as revoluções do século XX, iria deixar uma indelével marca nas barricadas políticas portuguesas.[1] No palco político nacional, com Afonso Costa com as rédeas do poder nas mãos, mantinha-se o primado do triunvirato guerrista nuclear, com Norton de Matos na Guerra e Augusto Soares nos Estrangeiros. Provavelmente porque os evolucionistas estivessem ainda a digerir os remorsos pela sua responsabilidade na manutenção dos afonsistas no Poder, são os unionistas ou camachistas, como se designavam os partidários de Manuel Brito Camacho, que tomam a iniciativa de preparar um golpe militar para derrubar os «democráticos». Do «comité director» inicial faziam parte os coronéis Alberto da Silveira e Alves Roçadas, os capitães Tamagnini Barbosa e Vicente Ferreira e o comandante médico naval Alexandre José Botelho de Vasconcelos e Sá. Reuniam-se habitualmente nas instalações de A Lucta e na Farmácia Durão, ao Chiado, propriedade do igualmente unionista António Ferreira. Mas por todo o lado se remordia e conspirava num mal disfarçado rancor aos afonsistas.
A gestão da «União Sagrada», dominado pelos «democráticos», deixara o país à beira da bancarrota e a carestia de bens de primeira necessidade era mais que notória. Faltava um caudilho que conseguisse agregar em torno de si todos os excluídos e rejeitados pelo PRP, desde os anarco-sindicalistas até aos católicos e aos monárquicos. E ele surgiu, providencialmente, na figura de um unionista de 45 anos, antigo ministro do Fomento (Economia) e das Finanças e ex-representante de Portugal em Berlim, de onde regressara depois de a Alemanha ter declarado guerra a Portugal. Sidónio Pais, lente de Matemática da Universidade de Coimbra e major do Exército (embora há muito sem função castrense), um republicano de sempre, nacionalista e maçon, acabou a encabeçar a conspiração, pondo nela toda a sua energia e poder de persuasão, aliciando e recrutando camaradas do Exército bem como civis. Com ele estavam igualmente dois dos principais cabecilhas do 5 de Outubro, José Carlos da Maia e Machado Santos. Este último encontrava-se preso no Fontelo, em Viseu, desde Dezembro do ano anterior e com ele, sob a sua influência, viriam também muitos «abrilistas» [participantes na revolta contra a hegemonia dos «democráticos» de 27 de Abril de 1913]. Durante os preparativos da conspiração, Camacho,[2] porventura cioso da liderança e do protagonismo, abandona a conjura, argumentando com o peso, que considerava excessivo, dos militares nos centros de decisão da conspiração. Mas a falta daquele apoio, sobretudo na vertente financeira, é suprida rapidamente por outro rico proprietário alentejano, António Miguel de Sousa Fernandes.[3] Se o 5 de Outubro fora um movimento estruturado por sargentos, a revolução pendente iria ser enquadrada por tenentes e alferes, cada vez mais receptivos à inspiração cultural dos intelectuais que rejeitavam a «tirania democrática», incluindo os do grupo do Integralismo Lusitano.
A 5 de Dezembro de 1917 estala a revolta em Lisboa; embora sem a maioria dos seus quadros superiores, várias unidades da capital avançam para a Rotunda e para o morro sobranceiro ao Parque Eduardo VII, onde Sidónio estabeleceu o seu posto de comando. No total, incluindo os soldados de Infantaria 5, 33 e 16, de Artilharia 1 e de Cavalaria 7, não atingiriam os dois mil homens já contando com os cadetes[4] da Escola de Guerra. Machado Santos preparava-se para se pôr em marcha a partir de Viseu, revoltando as unidades da Beira. Com Costa e Soares ausentes de Lisboa, a regressar ao país depois da «visita à guerra» e das reuniões de trabalho em França, Norton de Matos e Leote do Rego assumiram a coordenação da resistência governamental. Sabiam que contavam com forças muito superiores aos insurrectos, nomeadamente com a Marinha, a GNR, a Guarda Fiscal e os efectivos da Polícia. Nas ruas, os formigas brancas e os carbonários preparavam-se para defender os seus «patrões» e cabecilhas. Mas o que realmente marcava mais a diferença eram os canhões dos navios de guerra ancorados no Tejo e fiéis à gente no poder. E foi do contratorpedeiro Guadianae do cruzador auxiliar Gil Eanes, onde o segundo comandante era irmão de Sidónio, que partiram os primeiros bombardeamentos sobre a Rotunda. De onde lhes responderam as peças de Artilharia 1, calando alguns navios.
Mas, tolhido por uma estranha apatia, só na manhã do dia 7 o Governo tomou a iniciativa da contra-ofensiva terreste. Ao fim da tarde do dia anterior, tinha declarado o estado de sítio, perante o assalto generalizado às lojas e armazéns da Baixa por parte de uma turbamulta vinda dos bairros mais pobres da capital. Entretanto, resistindo serenamente, Sidónio via as suas forças civis, organizadas por Manuel Inácio Ferraz e por Manuel Pedro de Abreu, muitas delas de origem proletária, «engordarem», com o apoio negociado[5] que a União Operária Nacional, de tendência maioritária anarco-sindicalista, lhe aportou. E foram essencialmente essas forças populares que travaram a contra-ofensiva governamental, imobilizando, com os seus petardos e bombas artesanais, as tropas da GNR e dos marinheiros que a partir da beira-rio tentavam envolver os insurrectos. A mais valente tentativa de furar o perímetro dos sublevados, embora condenada ao insucesso, protagonizou-a no largo do Rato, um destacamento de marinheiros, sob o comando de Agatão Lança que ficaria gravemente ferido no assalto. Perante o impasse, Norton de Matos tenta a táctica do 14 de Maio, procurando ganhar tempo com iniciativas de parlamentação com os revoltosos. Mas Sidónio não cai na esparrela, mantendo-se firme na sua lógica de vitória; «morrer ou vencer!» era o grito que se ouvia na Rotunda.
Perante o fracasso da iniciativa, Norton de Matos vê-se então obrigado, em nome do governo, a apresentar a demissão a Bernardino Machado. Este, manhosamente, para dividir os adversários, convidou Camacho a formar Ministério, depois de ter conseguido um cessar-fogo. Contudo, Sidónio Pais não desarma e, em nome da Junta Revolucionária,[6] recusa a «solução Camacho» e procede ele mesmo a nomeações políticas e militares para os cargos mais críticos. A partir do seu quartel-general no Arsenal, Norton de Matos e Leote do Rego conseguem fugir, refugiando-se no navio inglês Woodnut, um vapor de passageiros armado surto no Tejo e que zarparia a 12 de Dezembro. Afonso Costa,[7] acompanhado pelo seu cunhado e secretário José de Abreu e pelo ministro Augusto Soares, é detido no Porto[8] e enviado, a 11, no vapor Viana sob prisão, primeiro para a Trafaria e depois, a 18, para o Forte da Graça, em Elvas, de onde só sairá a 30 de Março de 1918, com destino ao exílio em Paris. Caíra pela terceira vez; o seu último executivo durara 231 dias.
Bernardino, no seu tradicional estilo, entre cordial, trapaceiro e casmurro, fingindo-se incauto, resiste à renúncia do cargo pelo que a delegação que Sidónio lhe enviara, os oficiais Eurico Cameira, Teófilo Duarte e Sá Guimarães, se vê obrigada a dar-lhe voz de prisão em nome da Junta insurrecta. Ficará em Belém até ao dia 15, quando lhe é imposto o exílio no estrangeiro, tendo então apanhado o comboio com destino a França. Machado Santos, que conseguira sublevar as Beiras provocando um efeito de contágio noutras regiões do país, chega entretanto a Lisboa. Após a incerteza de alguns dias, depois de uma centena de mortos e de mais de quinhentos feridos, a 8 de Dezembro, a «revolução» para apear os «democráticos» do poder triunfara. O delegado militar inglês em Portugal, o general Barnardiston apressou-se a ir cumprimentar o vitorioso chefe revolucionário que também não se fez rogado em se deixar fotografar a seu lado, procurando, com calculismo diplomático, tranquilizar os espíritos dos aliados. E, em breve, Portugal e Inglaterra elevariam as suas representações diplomáticas à categoria de Embaixadas; o que iria deixar os derrotados próceres «democráticos» à beira de um ataque de nervos.
Sidónio não pensara em si próprio para chefiar o governo que sairia da revolução triunfante. Quando depois do abandono de Camacho se virara para o seu correligionário António Maria Bettencourt Rodrigues[9] tinha-lhe dito: «eu ficarei de fora, garantindo a ordem, e o senhor governará, ao que o médico retorquira que quem sai vencedor de uma revolução é quem ganha prestígio diante das multidões; nele confiam, a ele se entregam…» Tentou ainda convencer o independente José Relvas mas igualmente sem sucesso. De facto, era o próprio Sidónio que surgia aos olhos do povo como o «messias redentor» capaz de varrer do Poder a «corja de facciosos radicais, demagogos e malabaristas» parlamentares, que haviam dividido e atirado o país para o plano inclinado da bancarrota. O Major praticava a antítese do comportamento dos «democráticos» que tinham tiranizado o país, fracturando-o, lançando uns contra outros. A sua ascensão fora um típico fenómeno que se aproximava do que hoje se designaria por bonapartismo. Sidónio possuía um «não sei quê», uma «graça», que inspirava nas massas, e não só, uma atracção que raiava a veneração. À frequente adulação respondia que «Sidónio Pais não existe; é, se quiserem, o símbolo das aspirações da Pátria». E era o «herói» que prometia para um horizonte temporal quase imediato o «fim da desordem», gerada pela «demagogia», e a afirmação do «império da lei».
Superando as convicções individuais sobre o regime, ou mesmo sobre o «sistema», gerou-se em torno dele um ralliement de personalidades que ficariam conhecidas como «dezembristas». Quase todas elas intuíam ser mais importante, naquele momento, o interesse nacional que a afirmação das expressões políticas particulares. Os dezembristas e Sidónio sempre afirmaram que o golpe tinha como intuito «acabar com os ódios que dividem a família portuguesa» e que era preciso «implantar um regime novo em que monárquicos e republicanos possam viver». E neste pressuposto nasceu a 11 de Dezembro o primeiro Executivo dezembrista. O chefe do Governo tutelava, em acumulação, as pastas dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Machado Santos ficava com o Interior e José Feliciano da Costa com o Trabalho; os unionistas António dos Santos Viegas, Alberto de Moura Pinto e António Aresta Branco, com as Finanças, a Justiça e a Marinha, respectivamente; dois «centristas», Alfredo de Magalhães e João Tamagnini Barbosa (ex-unionista), assumiam a Instrução Pública e as Colónias e Francisco Xavier Esteves o Comércio. Enquanto o Congresso não elegesse um novo Presidente da República seria também Sidónio o Chefe de Estado interino. E, uma vez confirmado o triunfo da revolução, antes mesmo de o novo executivo ter tomado posse formal, já a 9 de Dezembro a Junta Revolucionária mandara suspender o Parlamento, anular as sanções impostas aos bispos e sacerdotes, libertar os implicados na intentona de 13 de Dezembro de 1916 e reintegrar os saneados políticos. Procurando tirar partido da sua «participação à ilharga» na vitória revolucionária, a União Operária Nacional manifesta-se publicamente, apresentando à Junta Revolucionária um conjunto de reivindicações de onde sobressaía a «utilização imediata dos terrenos baldios». A formiga branca, fenómeno emblemático dos executivos «democráticos», seria agora parcialmente imitada pelos «lacraus» sidonistas.
Ainda não tinha decorrido um mês sobre a eclosão da revolta dezembrista quando a 8 de Janeiro de 1918, os vencidos e humilhados marinheiros se revoltam a partir dos seus coutos habituais: o quartel de Alcântara e o navio Vasco da Gama que se encontrava, na altura, em reparação. Para subjugar os marinheiros em terra, aparentemente sem oficiais, Sidónio enviou Teófilo Duarte que rapidamente os submeteu; quanto ao Vasco da Gama ele próprio dirigiu a artilharia que do Castelo de São Jorge obrigou o navio à rendição. Dominada a revolta, Sidónio percebe que tem de avançar depressa para o seu modelo de governação que deverá assentar no apoio popular e na força armada, garante da Autoridade. A 12 de Janeiro, ainda com o cheiro a pólvora e os ecos da revolta dos marinheiros no ar, já Sidónio tinha iniciado um périplo pelo país para contacto pessoal com as massas. Diz que o faz para «tactear a opinião pública», porque «não se pode governar sem o apoio da opinião e não há força alguma militar que a domine».[10] Dirige-se primeiro ao Porto de onde havia notícias vagas sobre uma conspiração em maturação, promovida por «figuras pouco queimadas» dos «democráticos». E é no Porto que, pela primeira vez, falará em República Nova, repetindo o soundbite em toda a tournée, onde pode testemunhar a enorme popularidade de que gozava, de Norte a Sul, nos meios rurais e nas cidades. Em sucessivos banhos de multidão, por todo o país foi vitoriado entusiasticamente pelo Povo que esperava dele a panaceia milagrosa que os curasse do caos permanente, da fome iminente e da calamidade da Guerra.
Sidónio propunha-se «restaurar a república generosamente proclamada a 5 de Outubro e miseravelmente atraiçoada por uma casta política» que «explorava» o Estado «em proveito próprio e com grave dano para o país», dizia. E insistia nas teclas do «triunfo da república contra a demagogia» para salvaguarda da «harmonia e unidade da Pátria», como constava no programa do Governo. A sua ideia geratriz era o conceito de República Nova em que «monárquicos e republicanos pudessem viver», lado a lado, livres da ditadura da esquerda radical. Procurou reconciliar o regime com a Igreja,[11] apoiando as iniciativas do ministro Moura Pinto na redefinição do papel das comissões cultuais, na anulação das disposições persecutórias e discriminatórias[12] de Afonso Costa e no reatamento das relações com o Vaticano.[13] A 11 de Março, a restritiva lei eleitoral afonsista iria mesmo ser modificada por decreto (complementado por outro a 30 do mesmo mês) com vista ao sufrágio universal;[14] agora, «todos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos, no gozo dos seus direitos civis e políticos, sabendo ou não ler e escrever», iam poder votar. E na República Nova, quer os monárquicos quer os católicos passavam a ter direito de expressão política igual ao dos outros.
Tal facto levou a que, em protesto, se tivesse organizado um bloco opositor que englobava unionistas, evolucionistas e os «democráticos» que, na campanha eleitoral de Abril, mesmo para uma assembleia eventualmente «constituinte», se iriam manifestar pela abstenção. Muitos deles alertaram Sidónio para o facto de que o sufrágio universal iria beneficiar sobretudo os monárquicos. Mas já antes, a 7 de Março, na fase inicial do processo de contestação às intenções eleitorais de Sidónio, os três ministros unionistas tinham abandonado o governo,[15] tendo sido o ex-ministro da Justiça, Moura Pinto, a propor a abstenção como atitude a assumir pelos unionistas nas eleições que se aproximavam. Camacho, o dirigente unionista, o próprio partido de origem de Sidónio, entendeu que ele, ao dissolver as câmaras do Congresso, fora longe demais na sua atitude anti-parlamentar. E reunindo o plenário da União Republicana, a 8 de Abril de 1918, repetirá o que já anteriormente tinha feito a Pimenta de Castro, retirando o apoio político ao Governo numa altura crítica. Mas, em protesto contra essa atitude, um número significativo de unionistas abandona estrondosamente o partido, manifestando o seu apoio a Sidónio Pais. Camacho, bem como alguns outros próceres republicanos, não conseguia encarar sem desconforto as ideias subjacentes à República Nova. Afinal, tinham querido apenas corrigir o rumo da «República Velha», sequestrada pelos «democráticos». A gota de água era agora a pretensão de Sidónio em eleger o Chefe de Estado pelo método directo, por sufrágio universal. E para concretizar a sua ideia-força «presidencialista», vai pôr todo o seu peso carismático na legitimação democrática, através de eleições, directas e universais que pudesse pôr rapidamente fim ao «introito ditatorial».
A deserção dos homens de Camacho, em vez de atrapalhar Sidónio, liberta-o de compromissos e dá-lhe campo livre para implementar as suas ideias. O seu cargo diplomático em Berlim expusera-o a um conjunto de ideias novas em que o individualismo liberal fora suplantado pela lógica do bem comum, da superioridade da comunidade sobre as partes e, concomitantemente, pela «razão de Estado». E todas essas doutrinas, que estruturavam o organicismo alemão, tinham por referência axial a figura do «César», geratriz da Autoridade. Na Alemanha tinha podido perceber como o exercício desse poder emanante havia mitigado a questão social, conduzindo a um equilibrado processo justicialista, justamente o oposto do que se verificava em Portugal onde o progressismo burguês era o principal carrasco das organizações operárias. Em Beja, onde se deslocara para mais um contacto com o povo, aclarando os seus propósitos sobre a sua concepção do sistema político, tivera ocasião de proclamar:
«O regime parlamentar já deu todas as suas provas durante oitenta anos de constitucionalismo monárquico e as provas são negativas. Em pleno século XX não é possível o regime absoluto, tendo-se portanto que optar pelo regime republicano; mas para isso é necessário que o país se pronuncie sobre a forma de regime que deve adoptar: se parlamentar, se presidencialista. O primeiro faliu, o segundo é a Ideia Nova.»[16]
Sidónio irá manter a fachada institucional republicana mas procurará superar a inconciliável e mutuamente destruidora divisão política do país, chamando a si o comando centralizado do Estado. Queria implantar um sistema político «que não fosse reaccionário nem demagógico». Pela primeira vez, são autorizadas as mulheres com o curso de Direito a exercerem advocacia e a candidatarem-se a cargos públicos. Em meados de Março de 1918, em reacção ao insistente acosso que alguns sectores da oposição faziam ao sidonismo, a imprensa generalista anuncia a criação de uma auto-intitulada Junta de Salvação Nacional que, sem nomes que a identifiquem, propõe, em manifesto, a prisão dos boateiros e a suspensão dos jornais afectos aos «democráticos» a quem acusa de serem uma «associação de malfeitores». E como instrumento de projecção eleitoral do sidonismo é criado, em 30 de Março de 1918, o Partido Nacional Republicano – PNR. Constituíam-no personalidades republicanas conservadoras como António Egas Moniz que pouco antes, depois de encabeçar uma cisão no partido evolucionista, em 20 de Outubro de 17, havia fundado o Partido Centrista Republicano com Eurico Cameira, Simas Machado, Tamagnini Barbosa, Gomes da Costa, Vasconcelos e Sá e o padre Casimiro Rodrigues de Sá, abade de Padornelo e ex-deputado à constituinte de 1911.[17] O PNR, além dos quadros do Partido Centrista, pôde contar durante algum tempo com o próprio Machado Santos e os seus reformistas, um jovem militar chamado Francisco da Cunha Leal e com quase todos os verdadeiros dezembristas.
Comungando desse clima de congraçamento e concórdia, em Fevereiro de 1918, António Sérgio, Reis Santos, Ruy Enes Ulrich, Francisco António Correia e Pedro José da Cunha tinham criado a Liga de Acção Nacional. Este último, reitor da Universidade de Lisboa, será o presidente desse «movimento de opinião pública», que, fora e acima de qualquer partidarismo político, no dizer de António Sérgio, «apenas visava a verdadeira união sagrada – a Concórdia Nacional».[18] E será Sérgio que, com a colaboração de Ezequiel de Campos e de Raul Proença, publicará a Pela Grei, «revista para o ressurgimento nacional, pela formação e intervenção de uma opinião pública consciente»[19], apontada como órgão da Liga. No âmbito da acção prosélita da organização, Sérgio proferiu na Sociedade de Geografia de Lisboa a sua célebre conferência intitulada «O Ensino como factor de ressurgimento nacional».
No exterior, a ascensão ao poder do antigo representante de Portugal em Berlim havia feito temer aos Aliados, nomeadamente aos franceses, uma deriva germanófila em Lisboa. De facto, Sidónio tinha-se demarcado de Paris sem no entanto pôr em causa a tradicional orientação pró-inglesa. E procurou aproximar-se de Madrid,[20] cordialmente mas com cautela. Como prova da sinceridade das suas intenções, Egas Moniz, chefe do partido centrista, verdadeiro sustentáculo inicial do sidonismo, é nomeado para representante de Portugal em Espanha, substituindo Augusto de Vasconcelos que, por sua vez, parte para a embaixada de Londres[21] de onde Teixeira Gomes tinha sido afastado. Demarcando-se da política externa dos governos dominados pelos «democráticos», o executivo de Sidónio dava início a um período de verdadeira distensão diplomática, com Lisboa a procurar resolver o contencioso económico-financeiro com o país vizinho. E, eventualmente, ir mais longe, formalizando um «tratado de aliança».
Em Londres, Augusto de Vasconcelos, que, recorde-se, fora chefe do Governo em que Sidónio se ocupara das Finanças, recebeu a incumbência de auscultar o Foreign Office sobre a pretendida mudança na orientação política portuguesa face a Espanha. Arthur James Balfour, o sucessor de Grey, teve dificuldade em perceber o porquê dos intuitos aliancistas e desaconselhou-os, afirmando que «os Aliados deviam reservar a sua completa liberdade de actuação sobre essas questões para, depois do fim da guerra, combinarem entre si o que mais convém a todos e a cada um».[22] Mas o que animava Sidónio eram outros propósitos: além de procurar reduzir a nossa dependência face a Londres e romper com o restritivo bloqueio na orientação da nossa política externa, já estava a pensar no após-guerra. Sabendo ler os «tempos» e ouvir os «ventos», para Sidónio, além da normalização das relações económico-financeiras, havia a intenção de criar com Madrid um sólido instrumento de defesa recíproca contra a emergente «revolução social».
A 9 de Abril de 1918, os germânicos, depois de uma intensa barragem de fogo de artilharia e de metralhadoras de que não havia memória, com várias Divisões, esmagaram a linha portuguesa no sector da ribeira de La Lys.[23] As forças do CEP, reconhecidamente esgotadas, foram apanhadas em contrapé, no meio da agitação de uma operação de substituição por unidades frescas inglesas. Por sobre os escombros da Batalha do Lys, de que os jornais não haviam conseguido transmitir toda a dimensão da dantesca hecatombe, Sidónio, querendo validar a sua estratégia política, punha todas as esperanças no processo eleitoral por sufrágio directo universal masculino. Procurando acomodar as várias sensibilidades «dezembristas», as eleições deveriam não só referendar o Chefe de Estado mas, simultaneamente, eleger «os representantes do país, com poderes para elaborarem a Constituição». Contra a intenção assumida por Sidónio Pais, o bloco das velhas facções em que o PRP se tinha cindido iria fazer obstinada campanha pela abstenção. No dia 28 de Abril de 1918, dos cerca de oitocentos e oitenta mil recenseados votariam em Sidónio mais de quinhentos e catorze mil,[24] ou seja mais de 58,4%, uma percentagem muito elevada para a habitual participação política de então. Para as legislativas, devido à ausência dos três principais partidos republicanos, a participação dos eleitores não foi famosa. O PNR elegeu 108 dos 155 deputados, sendo os outros 37 monárquicos, 5 independentes, 4 católicos[25] e 1 «regionalista» (o advogado e jornalista são-tomense João Monteiro de Castro, tido por socialista). O Senado terá 77 lugares, organizados num misto de regras parlamentares clássicas com princípios corporativos. Mas apesar da assunção «cesarista» de Sidónio ter sido ratificada por mais de quinhentos mil votos, os opositores não desarmavam e continuavam com a sua febricitante actividade conspirativa,[26] alarmados com a «escandalosa» subida eleitoral dos monárquicos que, em Arganil, por exemplo, até tinham batido os próprios candidatos sidonistas. Embora reconhecendo o apoio dos monárquicos, «que até são pessoas honestas», à situação, Sidónio nunca deixará de insistir que «diga-se o que se disser, agrade a quem agradar, o governo é republicano».[27]
À instabilidade que entretanto a «augusta ordem», e os sectores a ela associados, pretendiam impor na sociedade portuguesa respondia a «situação» com uma constante e implacável actividade repressiva. A tão criticada lei da censura do Executivo de Afonso Costa, de 28 de Maio de 1916, foi reposta em vigor. E vários foram os cabecilhas, sobretudo «democráticos», detidos ou exonerados dos seus cargos públicos. Muitos tiveram que se recolher no outro lado da fronteira, onde as redes maçónicas, designadas genericamente por «republicanas», os acolhiam e suportavam. Quando a dinâmica das conspirações anti-sidonistas o exigia, muitos deslocavam-se facilmente entre os dois países sem grandes entraves das autoridades fronteiriças, quer portuguesas quer espanholas. Mas é sobretudo em França que mais se agita o núcleo duro dos conspiradores «democráticos», agasalhados por Le Grand Orient de France. E é na sua própria sede em Paris, na rue Cadet, que medra a «loja» Portugal, baluarte máximo da conspiração anti-dezembrista. No espírito dos emigrados políticos crescia a ideia de que, sendo difícil minar o exército, só eliminando Sidónio se evitaria que o dezembrismo ganhasse raízes em Portugal. E falou-se em enviar um assassino, um oficial do exército que se predispusera a «resolver o assunto».[28]
Proclamado Presidente da República a 9 de Maio de 1918, logo Sidónio, com intuitos pacificadores, promovera uma amnistia que abrangia os delitos políticos bem como alguns crimes comuns derivados da actividade política, como, por exemplo, o de deserção; mas contemplava apenas as praças, não os oficiais, deixando assim de fora figuras como Norton de Matos ou Leote do Rego. Na sequência da sua tomada de posse como Presidente da República, democraticamente eleito, Sidónio, nos termos do decreto de 30 de Março, devia substituir o Governo. E, quiçá para melhor vincar o carácter presidencialista do regime, os novos titulares passam a ser designados por Secretários-de-Estado, à inglesa. Assim, a 15 de Maio é apresentado um novo executivo, como caras novas mas também com muitos repescados do anterior elenco,[29] na realidade, apenas dois governantes, próximos de Sidónio, abandonam funções: Feliciano da Costa e Pinto Osório. Na abertura do Parlamento, a 22 de Julho de 1918, no seu discurso, Sidónio, focado no país mas sobretudo no estrangeiro, onde os exilados guerristas «democráticos» insistiam em denegrir a sua imagem, taxando-o de germanófilo, afirma: «Por dois inflexíveis princípios guiamos a nossa política internacional desde a primeira hora da Revolução de Dezembro: a nossa dignidade de povo livre e uma perfeita lealdade para com os nossos amigos e aliados». E, dando claro sinal do desinvestimento no teatro da Guerra, ao saudar os combatentes, acrescenta: «A melhor recompensa que poderemos dar a esses bravos, enquanto não nos cabe a honra de ir verter com eles o nosso sangue pela Pátria, será o de dedicarmos todos os nossos esforços e votarmos a nossa vida à causa da felicidade do povo português de quem são nobres representantes na formidável luta mundial». Mas logo no dia seguinte, Cunha Leal, na Câmara dos Deputados, e Machado Santos que entretanto abandonara o governo em Junho,[30] no Senado, abrirão as hostilidades, começando por questionar, cada um à sua maneira, o desaparecimento da figura de «Presidente do Ministério», prevista na Constituição de 1911. E em breve juntarão as suas vozes às d’O Mundo e d’A Lucta nas críticas ao «evidente comportamento autocrático» de Sidónio, digno «de reis absolutos».
A facção mais parlamentarista consegue então eleger Egas Moniz para chefe parlamentar do PNR. Mas a volubilidade e irrequietismo de grande parte da bancada sidonista não lhe facilitaram o trabalho. E, apesar de não existirem representantes dos «democráticos», nem dos unionistas ou dos evolucionistas, nem por isso o Parlamento parecia dar melhor conta de si que as tão vituperadas pretéritas legislaturas da apeada «república velha». E o caldo entornou-se quando o secretário-de-Estado da Guerra, o coronel Amílcar de Castro Abreu e Mota, ao responder a uma interpelação que lhe fora feita na Câmara dos Deputados sobre a participação de Portugal na Guerra,[31] destapou o bem tapado arquivo dos governos guerristas a quem teceu graves acusações. Para gáudio, diga-se, da minoria monárquica que se manifestou com grande efusão, relembrando a sua tradicional posição anti-intervencionista. No meio de um tumulto pouco edificante, foi requerido que o assunto passasse a ser debatido em sessões secretas, as quais, no entanto, nunca viriam a ser convocadas. Para esfriar a agitação parlamentar que ameaçava contagiar a «rua», os trabalhos foram dados por encerrados a 6 de Agosto, sendo a retoma agendada para 4 de Novembro.
Como se percebia, no crescente clima de crispação que então se começara a viver, não só os opositores declarados, unidos na azáfama de preparar a queda do regime, criavam dificuldades a Sidónio. Também os seus apoiantes dezembristas impediam a estabilização política. Primeiro, antes das eleições, havia sido a própria questão da opção presidencialista, entre sidonistas e unionistas. Estes tinham usado como porta-voz José Barbosa que até defendia uma visão presidencialista[32] mas que insistia que a eleição do Chefe de Estado por sufrágio universal, por representar uma alteração constitucional, deveria ser precedida por uma que elegesse um Congresso com claras atribuições para o efeito. Mas mesmo depois, ultrapassada pelo facto consumado, a alegada inconstitucionalidade do rumo presidencialista, os propriamente ditos sidonistas estavam cada vez mais polarizados entre o presidencialismo integral e o de raiz parlamentar. Enquanto João Tamagnini Barbosa defendia o primeiro, o radicalismo liberal de António Egas Moniz e a maioria dos trânsfugas unionistas agregavam à sua volta os defensores do segundo. O busílis da questão residia na hipótese de se consagrar na putativa Constituição a possibilidade de dissolução parlamentar pelo Presidente da República, defendida por Sidónio e por João Tamagnini e a que se opunha Egas Moniz. Apesar da forte atracção que o «Presidente-rei», como o etiquetaria Fernando Pessoa, continuava a gerar nas massas populares, o regime manifestava, no entanto, uma fragilidade política notória que enfraquecia a sua base de sustentação junto das elites sociais.
A 18 de Julho desse ano nascera a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira[33] ou, abreviadamente, a Cruzada Nun’Álvares, como ficaria conhecida. Fundada pelo tenente João Afonso de Miranda era um movimento patriótico, apelativo à direita e aos católicos mas cuja base heterogénea ganharia igualmente a adesão inicial de várias personalidades da elite republicana laicista como Braamcamp Freire, Egas Moniz, João de Barros, Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra, Manuel Teixeira Gomes, Freire de Andrade, Alfredo de Sousa, José Jacinto Nunes, Henrique Trindade Coelho ou António José de Almeida que foi o seu primeiro presidente honorário. Tal como vinha acontecendo em França com a evocação de Joana d’Arc, a «donzela de Orleães», a mítica figura de Nun’Álvares iria fornecer o símbolo axial capaz de reerguer o orgulho da comunidade, ferido pela turbulência dos primeiros anos da República e, sobretudo, pelo desastre militar de proporções anormais ocorrido em La Lys. Como salienta Castro Leal,[34] a «função simbólica da Cruzada», mormente o seu messianismo redentor e regenerador, resultava da síntese da «tradição providencial católica», expressa na figura do «Santo», e da «hagiografia positivista» republicana, manifestada no culto do «Herói». A dinâmica regeneradora dos mitos nacionais da Cruzada, sublimados no Santo Condestável, viria a ter uma grande influência no desenrolar futuro do regime e na formação dos seus quadros mais à direita. No providencialismo católico português, quatro projecções messiânicas têm especial significado: «o milagre de Ourique», no séc. XII, na alvorada da fundação da nacionalidade, «o Santo Condestável», no séc. XIV, «Nossa Senhora da Conceição» de Vila Viçosa, no séc. XVII, e, finalmente, as «Aparições de Fátima», no séc. XX. E, como sabemos, Fátima projectara-se de forma indelével no subconsciente do povo português desde o início das Aparições.
(Fim da primeira parte: Continua)
NOTAS
[1] No Bandeira Vermelha, de 7 de Outubro de 1919, ler-se-ia:
«Proletários: Perante a questão russa só há dois campos, duas bandeiras, dois partidos nitidamente definidos. Dum lado os exploradores e os negreiros, o bando negro dos inimigos e detractores da Revolução, qualquer que seja a máscara que afivelem – republicana ou clerical, liberal ou conservadora – os Tzaristas. Do outro lado, a ala vermelha dos emancipadores, dos revoltados, dos produtores, dos trabalhadores, dos proletários – os Bolchevistas. Tzarismo e Bolchevismo são os dois polos opostos da sociedade actual.»
[2] Na decisão de Camacho não foi despicienda a conversa que manteve com Augusto de Vasconcelos, recém-chegado de Madrid, que lhe sugeriu que qualquer manobra revolucionária, na altura em que a frente externa portuguesa estava exposta na Guerra, poderia ser percebida como uma traição. Dir-lhe-á também, mais tarde, que Bernardino Machado estava já a par da conjura. Mas isso também já os conspiradores sabiam pois o agente policial infiltrado, Carlos Santos, havia-se manifestado e passado para o seu lado.
[3] O dinheiro fazia falta não só para custear as deslocações dos conjurados às várias unidades militares do país mas também para subornar adversários que pudessem contribuir para a colaboração, por inacção até, de hostes tradicionalmente leais aos «democráticos», como foi o caso do cabo marinheiro Gabriel, um dos cabecilhas dos «sovietes» da Armada.
[4] Dos chamados «cadetes de Sidónio», como Teófilo Duarte, Assis Gonçalves, Henrique Galvão, Eurico Cameira, Luna de Oliveira, Manuel Faria, José Mariares, Jorge Botelho Moniz ou Jorge da Costa Pereira, alguns eram já, na realidade, oficiais subalternos, tenentes que tinham servido como oficiais milicianos na Grande Guerra, decidindo-se depois pela carreira das armas. Mas outros, como Duarte ou Botelho Moniz, tinham apenas 19 anos quando foram chamados ao exercício de importantes cargos executivos.
[5] Acordo intermediado pelo dirigente acrata Aurélio Quintanilha, antigo aluno de Sidónio em Coimbra. A aparente postura anti-guerrista de Sidónio granjeou-lhe um autêntico estado de graça junto das camadas populares que odiavam os «democráticos». Mas para o movimento operário sindical seria «Sol de pouca dura». Contudo, alguns sindicalistas revolucionários como Sebastião Eugénio, o João Corticeiro e o acrata Bourbon e Meneses namoraram mesmo o sidonismo, a fazer fé em Emídio Santana. Vd. Memórias de um militante anarco-sindicalista, op. cit..
[6] Constituída por ele próprio, por Machado Santos e pelo capitão José Feliciano da Costa Júnior.
[7] Afonso Costa ficou transtornado quando soube que a arraia-miúda lisboeta, que tanto o tinha idolatrado no passado, lhe havia invadido a casa e exposto na rua, à laia de saque, um anacrónico achado: uma variegada colecção de arte sacra, formada por piedosas imagens religiosas e pinturas de Santos e Virgens. Jamais lhes perdoaria o gesto.
[8] O revolucionário dezembrista capitão Alfredo Melo de Carvalho queria trazer Costa de automóvel para Lisboa. O general Ilharco, na altura o comandante da 3.ª Divisão, a do Porto, temendo pela vida de Afonso Costa, opôs-se-lhe e enviou-o com os seus acompanhantes para o quartel de Infantaria 6.
[9] Cf. MONIZ, António Egas – Um ano de política. Lisboa: Portugal-Brasil, 1919, p. 53
[10] Cf. O Século, de 19 de Janeiro de 1918; visto em História de Portugal (Dir. Damião Peres). Barcelos, Portucalense, 1954, Suplemento, p. 173.
[11] Sobre este assunto, Vd. O Estado e a Igreja em Portugal, op. cit., pp. 249-261.
[12] Ao interpretar o n.º 4 do artigo 3.º da Constituição de 1911, como atendendo à liberdade de exteriorização do pensamento, Moura Pinto não só reconheceu o direito dos crentes de, sem necessidade de qualquer autorização do Estado, se poderem congregar para providenciar ao culto, como acabou com o indigno e intromissor regime de pensões e subvenções a sacerdotes. Mandou ainda cessar a prática do «beneplácito» e a proibição do uso de hábitos talares em público. Mas a sua intervenção era meramente «política» e instrumentalmente pacificadora; em 1 de Junho de 1922, Moura Pinto considerará um «mero capricho» a posição dos católicos em não concordar com uma proposta de lei em que constava que o baptismo poderia ser administrado por qualquer cidadão, com excepção dos sacerdotes católicos. Cf. António Lino Neto: intervenções parlamentares 1918-1926, Lisboa, Texto Editores, 2009, pp, 66 e 135.
[13] O sucesso desta iniciativa ficou a dever-se essencialmente à acção diplomática do então ministro plenipotenciário em Madrid, o maçon António Egas Moniz. Mas, segundo ele, quer Bernardino Machado quer António José de Almeida já o haviam tentado à revelia dos principais cabecilhas «democráticos». Cf. Um ano de política, op. cit., pp. 113-114.
[14] O universo eleitoral passa então de 471.557 para perto de 880.000 recenseados.
[15] Na remodelação que se seguiu, Francisco Xavier Esteves transitou para as Finanças, Henrique Forbes Bessa (alferes, estudante do IST, com 23 anos) é nomeado para o Interior, Manuel José Pinto Osório para o Comércio e Martinho Nobre de Melo, um jovem professor universitário de 27 anos, «maçon a coberto», que então já dizia «não ser monárquico nem republicano» mas sim «neo-sindicalista à maneira de Duguit» (ou seja, corporativista), tomou conta da Justiça. Dois dias depois, José Carlos da Maia passa a tutelar a Marinha, Machado dos Santos assume o novo ministério das Subsistências e Transportes e Eduardo Fernandes de Oliveira o da Agricultura, também criado na altura. Sidónio continuou a assegurar, em acumulação, os Estrangeiros.
[16] Retirado de Nobre Povo de Nogueira Pinto que, por sua vez, cita SILVA, Armando Malheiro da – Sidónio e Sidonismo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2006. Vol. I e II.
[17] Outras figuras de relevo do Partido Centrista foram Eduardo de Almeida, João Pinheiro, Ângelo Ribeiro, Jerónimo Osório de Castro, Alfredo Machado, Francisco Newton de Macedo, Alberto Osório de Castro, Jorge Couceiro da Costa, Alberto Madureira, Carlos Pereira, João Ruella Ramos e António Malva do Vale.
[18] Cf. O Século, de 8 de Março de 1918.
[19] De entre os colaboradores da revista, para além dos já citados, salientaram-se Ezequiel de Campos, Raul Proença, António Arroio, Jaime de Magalhães Lima, Augusto Reis Machado, etc.
[20] «da Espanha, a nossa irmã peninsular, recebemos a cada instante novas demonstrações da sua amizade» dirá na sua mensagem presidencial nas cerimónias de abertura do Congresso, em 21 de Julho de 1918, transcrita em NETO, Roma – A morte do Dr. Sidónio Paes e a actual situação política. 1917 – 1919. Lisboa: Biblioteca do Povo, s/d., p. 32. É admissível que Roma Neto seja o pseudónimo do coronel Carlos Roma Machado de Faria e Maia.
[21] Não deixa de ser curioso o facto de terem sido nomeados três insignes professores de Medicina para as três representações diplomáticas mais significativas na conjuntura de então: Vasconcelos em Londres, Egas Moniz em Madrid e Bettencourt Rodrigues em Paris.
[22] Cf. Na Encruzilhada da Grande Guerra, op. cit., p. 194. N’A Época, de 31 de Dezembro de 1919, o dezembrista Cunha e Costa afirmará que «Sidónio foi o único estadista republicano que compreendeu o problema peninsular. […] além da reciprocidade dos interesses económicos fora prevista a recíproca defesa contra quaisquer veleidades de revolução social […]. Não quis o destino que a questão se resolvesse.» Idem, ibidem.
[23] As forças portuguesas perderam, entre mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros, 327 oficiais e cerca de 7.500 soldados, dos 721 e 20.359, respectivamente, que haviam entrado em combate.
[24] Quando Sidónio Pais foi proclamado Presidente da República, a 9 de Maio, faltava ainda o apuramento da contagem dos votos relativos aos círculos ultramarinos e a uma parte dos açorianos. Mas já tinham sido contados 513.958 votos favoráveis.
[25] Alberto Pinheiro Torres, Francisco Veloso, Alberto Dinis da Fonseca e Lino Netto.
[26] Sob a batuta de Luz de Almeida, à Carbonária sucedera uma nova associação terrorista designada por A Serrania. Cf. Episódios da minha vida, op. cit., p. 295.
[27] Luís de Magalhães dirá depois que «os monárquicos deram ao sidonismo a carne da maioria e ficaram, para si, com o osso da minoria».
[28] Cf. ROCHA MARTINS, Francisco José da – Memórias sobre Sidónio Pais. Lisboa: Sociedade Editorial ABC, 1921, pp. 264-265.
[29] Tamagnini é transferido das Colónias para o Interior, indo Forbes Bessa para o Trabalho. Vasconcelos e Sá, mais um «histórico do 5 de Outubro», entra para o Governo, assumindo as Colónias; igualmente estreantes, Osório de Castro fica com a Justiça, Amílcar Mota, com a Guerra, Espírito Santo Lima, com os Estrangeiros e Mendes do Amaral, com o Comércio.
[30] Machado Santos, por sugestão de Cunha Leal, então director-geral dos Transportes Terrestres, mandara prender os administradores da CP, maioritariamente unionistas. Mas Sidónio não o permitiu pelo que o ministro, sentido-se desautorizado decidiu bater com a porta. A saída inopinada de Machado Santos obrigou Sidónio a atribuir interinamente a pasta ao secretário-de-Estado da Agricultura. Em 14 de Julho fará transitar os serviços das Subsistências para o Interior e o dos Transportes para o Comércio.
[31] Sidónio não podia fazer marcha atrás na participação no teatro de guerra europeu, procurando honrar lealmente o compromisso aliancista. Mas, como facilmente se percebia, havia um sub-reptício desinvestimento no esforço combatente que, muitas vezes, chegou a roçar o desinteresse. Paradigma disso foi o encerramento da revista Portugal na Guerra que desde 1 de Junho de 1917 se editava em Paris, dando nota gráfica dos factos mais relevantes para a vida do CEP. O seu último número, o 8.º, está datado de Janeiro de 1918 e ainda apresenta uma recensão ao livro «intervencionista» de Sebastião de Magalhães Lima, Terras Santas da Liberdade, onde o grão-mestre do GOL expõe a sua ideia sobre a necessidade da entrada de Portugal na «verdadeira guerra», sob o título «Que representa o esforço português?».
[32] N’O Século, de 25 de Janeiro de 1918, defendera que o presidencialismo era mais apropriado à verdadeira separação dos poderes executivo e legislativo do que o parlamentarismo.
[33] Note-se que o condestável Nuno Álvares Pereira fora beatificado em Roma, a 23 de Janeiro de 1918.
[34] Cf. A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira, op. cit., p. 26.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário