Paula Blank
O meu trabalho consiste,
em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de
instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a
simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos ao ventilador de
cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e
utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo
de o fabricante ser europeu ou americano, as traduções são produzidas – em
geral – para Português de Portugal ou do Brasil, respectivamente. Por
conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema
de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização,
consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a
situação complicou-se.
O que me chega às mãos
está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para
qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são
infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na
tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê-se:
«Usar o ventilador de
maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM.»
Uma tradução correcta do
original em Inglês poderia ser assim:
«A utilização do
ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar
danos ao aparelho de RM (ressonância magnética).»
Em praticamente todos os
manuais traduzidos para Português do Brasil, e também no deste exemplo,
chama-se «vazamento» a fuga, «cabo de força» a cabo de alimentação, «tela» a ecrã, «plugue» a ficha (um «plugue»
que se «pluga», do verbo «plugar»), «jack» a tomada, «leiaute»
a disposição, «acurácia» a precisão,
diz-se que a impressora «está aquecendo»,
que «você tem de acessar isso»
(aceder) ou «você deve apertar aquilo»
(pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário («isso se faz
assim» em vez de «isso faz-se assim»), etc.
O manual de um dispositivo
de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma
tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi
corrigida (1) quando o fabricante passou a fazer parte da gama de
comercialização de certa empresa e (2) porque, depois de muita argumentação, o
fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal.
Peço-vos que voltem a ler
os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica,
o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de
uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu
revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos
perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As
traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas por tradutores
portugueses, em Português de Portugal, para que se possam cumprir os critérios
exigíveis. E isso não basta, é preciso que o tradutor preencha outros critérios
técnicos específicos, cuja discussão ficará para outra altura.
Contudo, há uma batalha
contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de
instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os
distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os
argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado
que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos
que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o
Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final.
Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis
para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem
provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil.
Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os
médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as
instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de
fácil e natural compreensão. Sim, aquilo que devia ser um direito, que está
previsto numa directiva europeia, que, por sua vez, foi transferida para a lei
portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.
É, portanto, com profunda
consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos
interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que (defendem
alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos
os registos do Português.
O Acordo Ortográfico, ao
criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão,
tem um resultado terrível para a tradução, porque enche o mercado português de
instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.
Mas ainda podemos inverter
este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber
como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal http://ilcao.cedilha.net/.
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