Uma primeira
crítica à ideologia de género situa-se no plano estritamente científico.
É ilusória a pretensão de prescindir dos dados biológicos na identificação das
diferenças entre homens e mulheres. Essa diferença existe na natureza e não é
fruto de arbitrárias construções culturais. As diferenças na estrutura do
cérebro entre homens e mulheres remontam às fases de crescimento pré-natal. O
sexo biológico não é sequer determinado pelos órgãos externos, mas pela
estrutura genética: cada uma das células do corpo humano é masculina (quando
contem os cromossomas XY) ou feminina (quando contem os cromossomas XX). Deste
modo, não é, em boa verdade, uma qualquer intervenção cirúrgica que pode levar
à mudança de sexo de acordo com a vontade da pessoa. Revelaram-se infrutíferas
as tentativas de educar as crianças desde o nascimento fora de qualquer
distinção de papeis masculinos e femininos, pois essa distinção acabou sempre
por, nalguma medida, vir ao de cima espontaneamente e desde tenra idade. E teve
resultados desastrosos para a pessoa em causa a tentativa de, em nome das gender
theories, «transformar», através da cirurgia logo após o nascimento e da
educação, um rapaz numa rapariga (o famoso caso Brenda-David Reimer, ocorrido
no Canadá nos anos sessenta)[8].
A propósito das
intervenções cirúrgicas de transformação dos órgãos sexuais externos das
pessoas transexuais, que os códigos de deontologia ética passaram a admitir,
afirma Elio Sgreccia, contestando essa admissibilidade no plano ético, que, uma
vez que a sexualidade tem uma dimensão genética mais profunda do que a dimensão
anatómica, essas operações não «mudam» o sexo, não ajustam o sexo ao que é
desejado, antes introduzem um novo desfasamento físico entre elementos
cromossomáticos e órgãos externos, que, de resto, não cumprem a sua função
procriadora, nem uma verdadeira função copulativa, permanecendo próteses
artificiais e não órgãos de sentido e de expressão emotiva e funcional. Não se
resolvendo desse modo o conflito, os distúrbios no plano psicológico não
desaparecem, antes podem ser agravados[9]. Há que
considerar que estamos perante mudanças irreversíveis, com tudo o que isso
implica. Podemos, assim, concluir que, para ir de encontro aos sofrimentos das
pessoas transexuais talvez seja outro o caminho a percorrer, não «contra a
natureza», de ajustamento do físico ao psíquico, mas de ajustamento, por meio
da psicoterapia, do psíquico ao físico.
Uma resposta
mais aprofundada no plano filosófico exige uma reflexão sobre os conceitos e a
relevância de natureza e lei natural. Sobre estes conceitos
tem-se debruçado o magistério da Igreja católica e, com alguma insistência, o
Papa Bento XVI.
Deve, antes de
mais, esclarecer-se que a lei natural não se confunde com a lei
biológica e que o relevo que lhe deve ser dado não se confunde com alguma
forma de fisicismo ou biologismo. Os dados biológicos objectivos
contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação que a inteligência pode
descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe, não como algo que se pode
manipular arbitrariamente. Mas a lei natural tem uma dimensão metafísica
e especificamente humana que não se confunde com a lei biológica. A
pessoa humana é um espírito encarnado numa unidade bio-psico-social. A pessoa
não é só corpo, mas é também corpo. As suas dimensões corporal
e espiritual devem harmonizar-se sem oposição. E assim também as
suas dimensões natural e cultural. A cultura vai para além da
natureza (também no que se refere às diferenças entre homem e mulher), mas não
deve opor-se a ela, como se dela tivesse que libertar-se.
Uma resposta à ideologia
do género consta da Carta aos Bispos da Igreja Católica da Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé (de que era então perfeito o cardeal Joseph
Ratzinger) Sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no
Mundo[10]. Aí se afirma,
a respeito da tendência que conduz à minimização da diferença corpórea, chamada
sexo, ao passo que a dimensão estritamente cultural, chamada género
é sublinhada ao máximo e considerada primária: este «obscurecimento da
diferença ou dualidade de sexos é grávido de consequências a diversos níveis.
Uma tal antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a
mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico, acabou de facto por
inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento da família, por
sua índole natural bi-parental, ou seja, composta de pai e de mãe, a
equiparação da homossexualidade à heterossexualidade, um novo modelo de
sexualidade polimórfica» (n. 3). A essa perspectiva contrapõe-se a antropologia
bíblica:
«A igual
dignidade das pessoas realiza-se como complementaridade física, psicológica e
ontológica, dando lugar a uma harmoniosa «unidualidade» relacional, que só o
pecado e as «estruturas de pecado» inscritas na cultura tornaram potencialmente
conflituosa. A antropologia bíblica convida a enfrentar com uma atitude
relacional, não concorrente nem de desforra, os problemas que, a nível público
ou privado, envolvem a diferença de sexo.
«Há que
salientar, por outro lado, a importância e o sentido da diferença dos sexos
como realidade profundamente inscrita no homem e na mulher: a sexualidade
caracteriza o homem e a mulher, não apenas no plano físico, mas também no
psicológico e no espiritual, marcando todas as suas expressões. Não se pode
reduzi-la a puro e insignificante dado biológico, mas é uma componente
fundamental da personalidade, uma sua maneira de ser, de se manifestar, de
comunicar com os outros, de sentir, exprimir e viver o amor humano. Esta
capacidade de amar, reflexo e imagem de Deus Amor tem uma sua expressão no
carácter esponsal do corpo, em que se inscreve a masculinidade e a feminilidade
da pessoa» (n. 8).
Sobre o
«significado esponsal do corpo», na sua masculinidade e feminilidade, enquanto
vocacionado para o dom conjugal, pronunciou-se aprofundadamente João Paulo II
no âmbito do conjunto de ensinamentos conhecido por teologia do corpo[11]. Nesta perspectiva, o
corpo humano tem um significado e uma vocação objectivos que a pessoa não pode
manipular arbitrariamente.
Sobre a lei
natural, a Comissão Teológica Internacional aprovou, em 2008, um documento, Em
busca de um ética universal: um novo olhar sobre a lei natural[12]. Aí se tecem
algumas considerações oportunas para a análise da questão que nos ocupa:
«O conceito de
lei natural supõe a ideia de que a natureza é para o homem portadora de uma
mensagem ética e constitui uma norma moral implícita que a razão humana
actualiza. A visão do mundo em cujo interior a doutrina da lei natural se
desenvolve e encontra ainda hoje o seu sentido implica, por isso, a convicção
racional de que existe uma harmonia entre as três substâncias que são Deus, o
homem e a natureza. Nessa perspectiva, o mundo é percepcionado como um todo
inteligente, unificado pela referência comum dos seres que o compõem a um princípio
divino fundador, a um Logos. Para além do Logos impessoal e
imanente descoberto pelo estoicismo e pressuposto pelas ciências modernas da
natureza, o cristianismo afirma que existe um Logos pessoal,
transcendente e criador» (n. 69).
A esta visão da
lei natural contrapõe-se aquela segundo a qual «a natureza deixa de ser mestra
da vida e da sabedoria para se tornar o lugar onde se afirma a potência
prometeica do homem. Esta visão parece dar valor à liberdade humana, mas, de
facto, opondo liberdade e natureza, priva a liberdade humana de qualquer norma
objectiva para a sua conduta. Esta visão conduz à ideia de uma criação humana
de todo arbitrária, ou, melhor, ao puro e simples nihilismo» (n. 22).
A doutrina da
lei moral natural não se confunde com alguma forma de «fisicismo», deve afirmar
o «papel central da razão na actuação de um projecto de vida propriamente
humano e, ao mesmo tempo, a consistência de um significado próprio dos
dinamismos pré-racionais». Assim, por exemplo, «o alto valor espiritual que se
manifesta no dom de si no recíproco amor dos esposos está já inscrito na
própria natureza do corpo sexuado, que encontra nesta realização espiritual a
sua última razão de ser»(n. 79).
Estas
considerações revelam bem as diferenças de pressupostos entre a visão da lei
natural e a da ideologia de género.
Da lei
natural, enquanto norma moral, chega-se ao direito natural, enquanto
norma jurídica. A este respeito, afirma ainda o documento da Comissão Teológica
Internacional em apreço:
«O direito não é
arbitrário: a exigência de justiça, que deriva da lei natural, é anterior à
formulação e à emanação do direito. Não é o direito que decide o que é justo.
Nem mesmo a política é arbitrária: as normas de justiça não resultam apenas de
um contrato estabelecido entre os homens, mas provêm, antes de mais, da própria
natureza dos seres humanos. O direito natural é um ancoramento das leis humanas
à lei natural. É o horizonte em função do qual o legislador humano deve
regular-se quando emana normas na sua missão de serviço ao bem comum. Nesse
sentido, ele honra a lei natural, inerente à humanidade do homem. Pelo
contrário, quando o direito natural é negado, a simples vontade do legislador
faz a lei. Então, o legislador deixa de ser o intérprete daquilo que é justo e
bom e passa a atribuir-se a prerrogativa de ser o critério último do justo» (n.
89).
É esta
arbitrariedade e esta pretensão de omnipotência do legislador que, como veremos
de seguida, os diplomas que vimos analisando, como outros que seguem a mesma
opção, parecem revelar.
Sobre estas
questões, tem-se debruçado com alguma insistência o Papa Bento XVI, Das suas
intervenções mais recentes a este propósito podem destacar-se as seguintes.
No discurso aos
participantes no Congresso Internacional sobre Lei Moral Natural promovido pela
Pontifícia Universidade Lateranense, de 12 de Fevereiro de 2007[13], afirmou:
O conceito de
lei moral natural, enquanto mensagem ética contida no ser, torna-se hoje, para
muitos, quase incompreensível por causa de um conceito de natureza já não
metafísico, mas apenas empírico. «O facto de a natureza, o próprio ser, já não
ser transparente para uma mensagem moral, cria um sentido de desorientação que
torna precárias e incertas as escolhas da vida de todos os dias».
(…) «A lei
natural é a fonte de onde brotam, juntamente com os direitos fundamentais,
também os imperativos éticos que devem ser honrados. Na actual ética e
filosofia do Direito, estão largamente difundidos os postulados do positivismo
jurídico. A consequência disso é que a legislação se torna muitas vezes apenas
um compromisso entre interesses diferentes: procura-se transformar em direitos
interesses privados ou desejos que contrariam os deveres decorrentes da
responsabilidade social. Nesta situação é oportuno recordar que cada
ordenamento jurídico, a nível interno e internacional, retira, em última
instância, a sua legitimidade do seu enraizamento na lei natural, na mensagem
ética inscrita no próprio ser humano. A lei natural é, em definitivo, o único
baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação
ideológica».
«Também a
verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente «dada»;
com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por
nós, mas sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela não nasce
da inteligência, mas de certa forma impõe-se ao ser humano» (n. 34).
«O livro da
natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a
vertente da vida, da sexualidade, da família, das relações sociais, numa
palavra, do desenvolvimento humano integral» (n. 51).
«Em nós, a
liberdade é originariamente caracterizada pelo nosso ser e pelos seus limites.
Ninguém plasma arbitrariamente a própria consciência, mas todos formam a
própria personalidade sobre a base de uma natureza que lhe foi dada. Não são
apenas as outras pessoas que são indisponíveis, também nós não podemos dispor
arbitrariamente de nós mesmos» (n. 68).
No discurso à
Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana, de 27 de Maio de 2010[15], a propósito da
problemática actual da educação, afirmou ainda Bento XVI:
«A outra raiz da
urgência educativa, vejo-a no cepticismo e no relativismo ou, com palavras mais
simples e claras, na exclusão das duas fontes que orientam o caminho humano. A
primeira fonte deveria ser a natureza, a segunda a Revelação. Mas a natureza é
considerada hoje uma realidade puramente mecânica, que não contém, portanto, em
si algum imperativo moral, alguma orientação valorativa. (…) Fundamental é,
portanto, reencontrar um conceito verdadeiro de natureza, como criação de Deus
que nos fala; o Criador, através do livro da criação, fala-nos e mostra-nos os
valores verdadeiros».
[8] Ver Laura Palazzani, op. cit., p. 54 a 57, e Giulia Galeotti, p. 31 a 47.
[9] Ver Manual de Bioética, I - Fundamentos e Ética Biomédica, Edições Loyola, São Paulo, 1986 (tradução brasileira da terceira edição italiana), p. 509 a 517.
[10] Acessível
em www.vatican.va.
[11] Pode
ver-se um resumo destes ensinamentos em Yves Sémen, La sexualité selon Jean
Paul II, Presses de la Renaissance, Paris, 2004 (tradução portuguesa da
Principia, 2006).
[12] Acessível
em www.vatican.va.
As citações do texto correspondem à minha tradução da versão italiana.
[13] Acessível
em www.vatican.va.
As citações do texto correspondem à minha tradução da versão italiana.
[14] Acessível
em www.vatican.va.
[15] Acessível em www.vatican.va.
A citação do texto corresponde à minha tradução da versão italiana.
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