Jaime Nogueira Pinto
Conheci Guilherme Alpoim Calvão no início dos anos
70, quando ele, no rescaldo do raid sobre Conacri, a chamada
operação Mar Verde, estava numa semiclandestinidade burocrática no Porto de
Lisboa, na Polícia Marítima, ou coisa que o valha.
Quem mo apresentou foi o meu sogro, Luís d’Avillez.
Almoçámos numa tasquinha do Parque Mayer, e Calvão desfiou-me a história da
expedição a Conacri, da preparação, das confusões, traições e imprevistos dessa
madrugada de Novembro de 1970; mas também do sucesso – dos militares
portugueses ali presos, que conseguira libertar.
Era uma história em que viviam a imaginação e o
atrevimento operacionais e outras coisas importantes e apaixonantes para um
miúdo como eu, aficionado de romantismos imperiais e de aventuras de «cães de
guerra» que aqui se combinavam com the fog of the war e as
suas voltas e azares.
Nascido em Chaves em Janeiro de 1937 e logo a
seguir levado para Moçambique, Calvão fizera o Curso da Escola Naval e
frequentara especialidades de Mergulho e Combate na Grã-Bretanha. Oficial
Fuzileiro, fizera várias comissões de serviço na Guiné, nas quais se
distinguira como combatente e comandante e que lhe valeriam as mais altas
condecorações nacionais, entre elas a Torre e Espada.
Alpoim Calvão era, como Jaime Neves e Heitor
Almendra, um militar – homem de guerra, com uma mistura rara de inteligência
operacional, coragem física, iniciativa e sobretudo um carisma único de levar
os homens – os seus homens, o seu pessoal – para onde quisesse, até às portas e
labirintos do Inferno, se preciso fosse.
Depois da revolução do 25 de Abril tentou, na
medida do possível – medida que hoje sabemos que era curta – salvar o que podia
ser salvo do Império e do País. Calvão conhecia a maioria dos revolucionários
do MFA, as suas folhas de serviços e capacidades e por isso tinha-os na devida
(não muito elevada) consideração. Mas não desistiu.
Foi por isso que conspirou e participou no 11 de
Março, afinal uma maquinação e provocação esquerdista, para antecipar e sabotar
a reacção conservadora nas Forças Armadas. Depois do fracasso anunciado,
escapou para Espanha.
Voltei a encontra-lo aí, ele no MDLP, eu mais
ligado a outro dos movimentos clandestinos anticomunistas que então se
organizavam.
Esses movimentos tiveram um papel importante na
articulação da resistência popular que, respondendo à violência com a
violência, equilibrou o balanço de forças em Portugal e permitiu o 25 de
Novembro e o Thermidor que se lhe seguiu.
Alpoim Calvão serviu-me de inspiração para uma das
personagens de Novembro, em que, ficcionando e imaginando, procurei contar uma
parte e uma percepção – a do outro lado, do «nosso» – desse tempo de exílios,
lutas e melancólicos balanços da História.
Regressado a Portugal, Calvão reintegrou-se na vida
civil e normal do país pós-imperial. Como era um homem de acção e com grande
força de viver, não se remeteu, como muitos outros, a uma nostálgica e passiva
contemplação mórbida de passados gloriosos, amaldiçoando sistematicamente o presente.
É difícil para as gerações que vieram depois da
Guerra e do Império compreender o ethos, a vida e o sentido da vida
de homens como Alpoim Calvão. São, somos, de «outro país», o que não quer dizer
que não entendamos e que até possamos gostar deste.
Calvão não era um «prisioneiro do passado». Aí há
10 anos, em 2004, decidiu arrancar para a Guiné-Bissau com uma empresa
destinada a empregar os seus antigos fuzileiros ou os seus descendentes. Fê-lo
com outro combatente de África, o Francisco Van Uden, naquele espírito – também
ás vezes incompreensível para estranhos – de que os que gostávamos
de África, não éramos necessariamente colonialistas opressores: gostávamos
daquelas pessoas e daquelas terras. E continuámos ou voltámos a gostar quando
de «nossas» passaram a ser «deles».
Voltando a esta história.
Quando soube dessa decisão, telefonei-lhe e
convidei-o para almoçar no Alecrim às Flores. E não resisti a
dizer-lhe:
«Comandante, eu tenho muito respeito e admiração
por si; mas mesmo assim, conhecendo-o há muitos anos, sabendo quem o Senhor é e
o que vale, acho extraordinário que na sua idade e com os seus problemas de
saúde (ele tinha uma insuficiência renal), volte agora para a Guiné, para
Bolama!».
A resposta veio pronta:
«Sabe, Jaime, quando ando por aí e vejo alguns dos
meus amigos e camaradas Almirantes na reforma e lhes pergunto o que estão a
fazer, eles respondem-me:
«Olha, estou a fazer horas para ir buscar a minha
mulher ao cabeleireiro», ou «para trazer os netos da ginástica»… E eu digo cá
para mim: ninguém me apanha nessa!».
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