sábado, 7 de novembro de 2015


O casamento gay

matou a amizade masculina?


Henrique Raposo, Expresso Diário, 5 de Novembro de 2015

Um grande amigo considera que o casamento gay matou a velha pureza da fraternidade masculina, nunca mais haverá bandos de irmãos como antigamente, nunca mais entraremos num balneário ou caserna da mesma forma, alguma coisa se quebrou, diz. Confesso-me dividido. Por um lado, uma certa agenda gay convocou uma absurda carga de cinismo para as proximidades de qualquer relação entre homens. Por exemplo, não é possível pesquisar artigos sobre «Moby Dick» sem encontrarmos lixo homoerótico que transforma Ishmael num amante de Queequeg. Então não era óbvio que eram gays? Em recônditos departamentos de menos recônditas universidades e jornais, encontramos este revisionismo gay que deturpa todas as personagens da Literatura ou da História. Tudo passa a ter uma leitura baseada no recalcamento gay. É como se não pudesse existir uma franca amizade sem a recompensa do sexo. Esta camada de cinismo pós-moderno coloca-nos a milhas da fórmula de Shakespeare. Hoje nenhum escritor colocaria Henrique V a dizer de forma sincera «we, band of brothers».

A amizade masculina quebrou ainda noutro ponto, menos teórico. Aposto que muitos já viveram a seguinte situação: marca-se um almoço ou jantar com um amigo em particular, mas ele não aparece sozinho, traz consigo outra malta; onde se esperava encontrar intimidade individual, encontra-se apenas pagode colectivo. Dois homens sozinhos à mesa é um cenário que deixa margem para dúvidas, logo muitos accionam mecanismos de controlo de reputação – até porque há sempre o empregado marialva que lança aquele olharzinho reprovador. Um mano a mano à mesa só mesmo para falar de negócios. Se não for para tratar do vil metal, não pode ser. Para resolver o assunto, ando a pensar num protocolo para impor a estes receosos amigos, a saber: entrar no restaurante acompanhado com as tailandesas das massagens (classe alta), passar por casa e trazer a empregada tailandesa que está clandestina (classe média), pedir um escarrador à saloon de cowboy, que deve ser colocado mesmo ao lado da mesa (classe baixa). Não podemos correr riscos, não é verdade?

Quer isto dizer que concordo com a tese? Sim e não. O clima, de facto, não é o mesmo. A sociedade que vê sexo entre Ishmael e Queequeg já está corrompida. A velha pureza já não é possível. Mas, por outro lado, tenho de dizer que tenho amigos gays – o que por si só invalida a tese. As conversas que mantenho com amigos gays são em tudo idênticas às conversas hetero, com uma óbvia excepção: mulheres. De resto, falamos de filmes, de livros, da vidinha, da pátria, da família que eu tenho e da família que eles querem construir. Moral da história? O problema mais uma vez está nos extremos. De um lado, temos uma ideologia gay que procura reescrever a História do mundo pelo ângulo do homoerotismo (com um pouco de esforço, ainda descobrem que Eva era afinal um homem). Do outro lado, temos a cautela defensiva da agenda que recusa encarar o gay como qualquer outro filho de Deus. Se calhar, tenho de combinar almoço a três.





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