quinta-feira, 17 de dezembro de 2015


Como irão contar o Natal

aos vossos filhos e netos


Nuno Serras Pereira

(Ilustrações da responsabilidade da redacção)

Estava Jerusalém inundada de luminárias que faziam da noite, dia, quando sobre ela se abateu uma escuridão sombria, trevas tremendas e pavorosas, das quais se arrancavam guinchos lúgubres, gritos lancinantes, sonoras iras raivosas entoando: glória a lúcifer nas profunduras e prazer irrestrito aos homens de vontade autónoma; anunciamo-vos uma grande dor, nasceu-vos hoje um desprotegedor, que o será para todo o povo; isto vos servirá de sinal, encontrareis um menino, adorado por um homem e pela mulher.


Imediatamente, os sacerdotes do género e os príncipes dos ambientalistas acorreram aos campos até encontrarem num estábulo tudo como lhes tinha sido dito. Os géneristas escandalizados com aquela discriminação claramente homofóbica, logo substituíram o homem por uma mulher, mas ao saberem que a primeira era Virgem, prontamente a vituperaram e expulsaram por constituir um péssimo e devastador exemplo para toda a gente ao renegar tão obstinadamente os ensinamentos dos doutores do género – havia a máxima urgência em retirar a criança àqueles pais, uma vez que era óbvia a sua incapacidade de lhe assegurarem uma formação sexual adequada, livre de preconceitos e discriminações.


Os príncipes dos ambientalistas, por seu turno, ao repararem na vaca, cuja emissão de gazes intestinais constituía um factor alarmante para o aquecimento global e consequente iminente fim do nosso planeta, logo dela se apoderaram para a matar ali mesmo, oferecendo-a como um sacrifício propício à mãe terra, intentando aplacar assim a sua ira – é certo que houve uma grande disputa até tomarem a resolução, pois alguns advogavam que se não se podia matar cães (dentro ou fora de canis), muito menos uma vaca, uma vez que era muito maior pois, de facto, argumentavam, se todos podemos fulminar melgas por serem pequenas, então não se pode aniquilar um bovino por ser muito maior; os sectários da matança do boi (pois, uma vez que a identidade de género não passa de uma construção social, tanto monta uma nomeação feminil como masculina) convenceram, no entanto, os seus adversários, provando que o impacto ambiental do cão era insignificante em comparação com a vaca.

Quanto ao burro, que tinha suportado tão grandes humilhações, sendo compelido violentamente, como se fora uma mísera besta, a percorrer tão longo caminho, suportando a intolerável carga, daqueles humanos – os terríveis predadores da natureza –, a mãe grávida e seu filho, era absolutamente imperativo reconhecer a sua eminente dignidade divina, para reparar uma injúria tão blasfema e sacrílega. Por isso, encaminhando-o para fora daquele reles presépio, de pronto lhe construíram um altar, adorando-o e ofertando-lhe oblações e sacrifícios dignos de tão magnificente divindade, a qual correspondia aos louvores e adorações com jubilosos zurros. Exaustos da cerimónia orgiástica, o frenesim foi diminuindo até que se dirigiram de novo ao presépio onde depararam com gentes esfarrapadas entoando, diante da criança envolta em paninhos, uma estranha antífona: Baixíssimo, impotente, grosseiro escravo,  a ti todo o aviltamento, o desprezo, a desonra e toda a maldição. A ti só, baixíssimo, se hão-de prestar e todo o ser humano é digníssimo de te nomear.

De súbito, um estardalhaço de trovão ribombante atroou os campos articulando palavras retumbantes: Sou o vosso Deus, o vosso Pai, que vos tem conduzido através da história operando prodígios de amor e Este é o Meu Filho humanado que vos enviei para vos resgatar.


Imediatamente, à uma, os sacerdotes do género e os príncipes dos ambientalistas desataram numa gritaria estridente enquanto tapavam os ouvidos, não fossem escutar blasfémias maiores.

Espumando raivas incontidas e ódios viscerais desenfaixaram a criança e enquanto o faziam os príncipes dos ambientalistas logo pontificaram que a ser verdade ou ao menos que houvesse uma suspeita razoável da criança ser deus incarnado seria então necessário condená-lo, sem demora, à morte, uma vez que esse deus era malvado, um perigo extremo para o desenvolvimento sustentável.  Não tinha ele arrasado as fertilíssimas terras de Sodoma e de Gomorra, tornando-as totalmente estéreis e matando toda a fauna marítima no mar, que por isso mesmo se chama morto? A esta indignação se ajuntou a ira descontrolada dos sacerdotes do género, acusando esse deus de homofobia, de discriminação, de coração duro, mente fechada, alheio a qualquer tipo de misericórdia.


Entretanto, desenfaixada a criança, verificaram se tratava de um varão, de um menino. Este horror veio irritar e transtornar ainda mais os sacerdotes do género, que, imediatamente, em cóleras desenfreadas acusaram a divindade de ser uma fraude, um resquício de uma projecção patriarcal, pois era evidente que o verdadeiro deus, caso se fizesse homem traria no seu corpo simultaneamente todas as características da sua identidade, a saber, lgbtqi. Aliás, a única divindade era a terra e os que naquela diversidade a habitavam.

Sem mais hesitações, num arrebatamento de indignação, desfizeram a manjedoura, e aproveitando os pregos e as tábuas da mesma, com ela formaram uma pequena cruz. Unanimemente o consideraram culpado, um engano do maligno, e todos concordaram que deveria ser crucificado. Como os pregos se mostraram demasiado grossos para prender os pulsos e os pés do Menino, arranjaram uns alfinetes especiais que serviam o propósito. Alguns dos que o escarneciam, impacientes com a demora da sua morte, recorreram a um canivete suíço para lhe trespassar o coração, do qual brotou sangue e água.

Verificada a sua morte, todos se regozijaram e a celebraram com um grande banquete, pois tinham conseguido salvar o planeta e o prazer promíscuo sem freio.








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