Luís Campos e Cunha, Público, 13 de
Novembro de 2009
A ideia de que a natureza tem horror ao vácuo fazia
parte da física na Idade Média. Mas esta lei do horror tem corolários na
vida actual: os políticos incompetentes têm horror a novas caras nos partidos;
os escroques têm horror a uma justiça que funcione; e, do mesmo modo, os
bons investidores têm horror a uma justiça que não funciona. E
podíamos continuar, mas vem tudo isto a propósito das notícias recentes
sobre o Colégio Militar.
Devo declarar que não frequentei o colégio, embora
com pena minha, porque o meu pai entendeu que eu poderia ser seduzido pela
vida militar e para tal bastava ele. O meu irmão esteve no colégio, por
circunstâncias familiares extremas, não se deu bem, e saiu ao fim de dois anos,
se bem me lembro. Não tenho, portanto, especiais ligações ao Colégio
Militar (CM) mas tenho muitos amigos (e dos bons) que por lá passaram.
As recentes notícias dão uma ideia do colégio como
uma escola de sevícias e de maus tratos. Problemas de maus tratos em escolas
sempre existiram e devem ser combatidos com determinação pelas autoridades da
escola em causa, mas não faz da escola uma instituição a fechar. Lembro-me
bem de, há uns anos na minha faculdade, terem ocorrido praxes indignas das
nossas caloiras e imediatamente o director de então tomou medidas para que tal
não voltasse a acontecer. E não aconteceu. O CM não é excepção, mas o que está
em causa é uma tentativa de fazer desaparecer uma das instituições mais
antigas de ensino na Europa com uma longa tradição de serviço ao País.
Recordo, com alguma tristeza, que uma das
«regalias» de um militar morto em combate em África era os filhos terem
educação gratuita no CM. Por esse facto e por as pensões de sobrevivência
serem, à época, absolutamente miseráveis (recordo-me de casos concretos), havia
sempre vários órfãos no Colégio. Fazia parte das obrigações dos graduados
(ou seja, alunos finalistas do CM) terem não só uns ratas (alunos caloiros)
como seus protegidos mas também cuidarem dos dramas de algum aluno cujo
pai tivesse morrido. Quem conhece ex-alunos do Colégio sabe que têm uma
organização e uma coesão ímpar em qualquer outra escola. Falam do colégio com
saudade e têm um respeito pela instituição como ninguém tem da sua escola. Nela
se fizeram amizades que perduram para toda a vida e alguns dos meus melhores
amigos são ex-alunos do CM e devo confessar que são sempre gente com outra
postura perante o dever e a sociedade.
O Colégio Militar dá educação em sentido pleno do
termo. Tem um ensino de excelente qualidade e dá quadros de valores que
nenhuma outra escola garante.
Em 1975, numa acção de dinamização organizada para
os alunos do colégio por gente afecta ao PCP – Varela Gomes, Faria Paulino
e outros – começaram a atacar a instituição e a apelidarem os alunos de
príncipes privilegiados.
Um aluno dos mais novos, ou seja com uns 11 anos,
levanta-se e calmamente diz que é filho de um oficial que morreu em combate,
que se não fosse o colégio não poderia estudar e não percebia onde estava o
príncipe. Os protestos generalizaram-se (teve lugar uma gigantesca boiada,
usando a terminologia do CM) e a comissão de dinamização foi forçada a sair
pela porta dos fâmulos – porta de serviço – e não pela porta principal.
Foi o enxovalho total, apesar de os oficiais tentarem, em vão, acalmar os
alunos. É gente de fibra.
Aliás sempre foi assim. Faz parte da sua história
mais antiga que quando teve lugar o atentado a Sidónio Pais gerou-se,
naturalmente, o pânico entre a população e as unidades militares ajudaram à
turbamulta. A única unidade que manteve a calma, ajudou a população e evitou
mais mortos foi exactamente uma unidade do Colégio. Portanto, a tradição vem de
longe.
O ensino tem uma qualidade excepcional e que não é
possível sem um internato, onde os laboratórios de línguas e as salas de estudo
estão ao lado do picadeiro e da sala de esgrima. Qualquer pai, cá fora, que
tente dar a mesma formação passaria o tempo a servir de motorista do filho. É,
aliás, uma tradição muito antiga dos melhores colégios ingleses.
Como professor na universidade, sempre que tenho
conhecimento de que um aluno meu veio do CM, posso testemunhar o aprumo, o à
vontade, a auto-confiança e o profissionalismo com que está numa aula. Tudo
isto, em flagrante contraste com os colegas, especialmente os mais betinhos.
Além disso, como os alunos são tratados por igual,
têm um número (que vem antes do nome), andam vestidos com farda e os filhos de
pais ricos não se distinguem dos filhos de pais pobres. Também por isso, o
convívio democrático hierarquizado é a regra. Ainda bem.
O contraste é gritante com o que se passa nas
nossas escolas. E a anarquia, quase geral em que vive o ensino secundário, tem
horror ao Colégio Militar, obviamente. Aliás, a verdade é mais funda: a
anarquia quase geral da nossa sociedade tem horror à Instituição Militar. Uma
instituição organizada, como a militar, que cultiva os valores da honra, da
camaradagem, da disciplina e do dever para com a Pátria, não pode ser bem vista
pela sociedade actual. A nossa vida colectiva – a civil – privilegia o
oportunismo, habituou-se aos casos de corrupção (com ou sem fundamento), tem
uma imprensa virada para o escândalo e uma televisão com novelas que são
difusoras da falta de valores e da ausência dos bons costumes.
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