sexta-feira, 15 de abril de 2016


Exortação pós-sinodal Amoris laetitia:

primeiras reflexões sobre

um documento catastrófico


Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 10 de Abril de 2016

Com a exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, publicada em 8 de Abril, o Papa Francisco pronunciou-se oficialmente sobre problemas de moral conjugal, em discussão há dois anos.

No Consistório de 20 e 21 de Fevereiro de 2014, Francisco havia confiado ao cardeal Kasper a tarefa de introduzir o debate sobre esta questão. A tese do cardeal Kasper, de que a Igreja deve mudar a sua prática pastoral nas questões matrimoniais, foi o leitmotiv dos dois sínodos sobre a família de 2014 e 2015, e constitui hoje a pedra angular da exortação do Papa Francisco.

No decurso desses dois anos, ilustres cardeais, bispos, teólogos e filósofos intervieram no debate, a fim de mostrar que deve existir uma íntima coerência entre a doutrina e a práxis pastoral da Igreja. Pois, de facto, a pastoral baseia-se na doutrina dogmática e moral. «Não pode haver pastoral que esteja em desarmonia com as verdades da Igreja e com a sua moral, e em contraste com as suas leis, e que não seja orientada a alcançar o ideal da vida cristã», observou o cardeal Velasio De Paolis no seu discurso inaugural ao Tribunal Eclesiástico Umbro de 27 de Março de 2014. A ideia de separar o Magistério de uma prática pastoral passível de evoluir de acordo com as circunstâncias, as modas e as paixões, segundo o cardeal Sarah, «é uma forma de heresia, uma perigosa patologia esquizofrénica» («La Stampa», 24 de Fevereiro de 2015).

Nas semanas que antecederam a exortação pós-sinodal, multiplicaram-se as intervenções públicas e privadas de cardeais e bispos junto do Papa, a fim de evitar a promulgação de um documento cheio de erros, detectados pelas numerosas alterações que a Congregação para a Doutrina da Fé fez ao projecto. Francisco não retrocedeu, mas parece ter confiado a última reescritura da exortação, ou pelo menos de algumas das suas passagens-chave, a teólogos da sua confiança, que tentaram reinterpretar São Tomás à luz da dialéctica hegeliana. O resultado foi um texto que não é ambíguo, mas claro na sua indeterminação. A teologia da práxis exclui qualquer declaração doutrinária, deixando à história desenhar a linha de conduta dos actos humanos. Portanto, como afirma Francisco, «é compreensível» que, sobre a questão crucial dos divorciados recasados,»(…) se não devia esperar do sínodo ou desta exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos» (§300). Se se está convencido de que os cristãos, no seu comportamento, não devem conformar-se com os princípios absolutos, mas porem-se a escutar os «sinais dos tempos», seria contraditório formular regras de qualquer género.

Todos esperavam resposta a uma pergunta de fundo: Podem receber o sacramento da Eucaristia aqueles que, depois de um primeiro casamento, se recasam civilmente? A esta pergunta a Igreja sempre respondeu categoricamente que não. Os divorciados recasados não podem receber a comunhão porque a sua condição de vida contradiz objectivamente a verdade natural e cristã sobre o casamento, significada e realizada na Eucaristia (Familiaris Consortio, §84).

A resposta da exortação pós-sinodal  é o contrário: em linha geral não, mas «em certos casos» sim (§305, nota 351). Os divorciados recasados devem realmente ser «integrados» e não excluídos (§299). A sua integração «a sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das diferentes formas de exclusão actualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas» (§299), sem excluir a disciplina sacramental (§336).

O facto é o seguinte: a proibição de os divorciados recasados se aproximarem da comunhão já não é absoluta. O Papa não autoriza, como regra geral, a comunhão aos divorciados, mas tampouco a proíbe. «Aqui – havia sublinhado o cardeal Caffara contra Kasper – se toca na doutrina. Inevitavelmente. Pode-se arguir que não se toca, mas toca-se. Não só. Introduz-se um costume que a longo prazo incute a seguinte ideia nas pessoas, até nas não cristãs: não existe nenhum casamento absolutamente indissolúvel. E isto é certamente contra a vontade do Senhor. Não há dúvida sobre isso» (Entrevista a «Il Foglio», 15 de Março de 2014).

Para a teologia da práxis, as regras não contam, mas sim os casos concretos. E aquilo que não é possível em abstrato, é possível na prática. Mas, como bem observou o cardeal Burke: «Se a Igreja permitisse a recepção dos sacramentos (ainda que num só caso) a uma pessoa que está em união irregular, significaria ou que o casamento não é indissolúvel e, portanto, que a pessoa não está vivendo em estado de adultério, ou que a sagrada comunhão não é a comunhão no Corpo e no Sangue de Cristo, o que, pelo contrário, requer uma recta disposição da pessoa, ou seja, o arrependimento do pecado grave e a firme resolução de nunca mais pecar» (Entrevista a Alessandro Gnocchi no «Il Foglio», 14 de Outubro de 2014).

Além disso, a excepção é destinada a tornar-se uma regra, porque em Amoris laetitia o critério do acesso à comunhão é deixado ao «discernimento pessoal» do indivíduo. O discernimento é feito através do «diálogo com o sacerdote, no foro interno» (§300), «caso a caso». Mas quais serão os pastores de almas que ousarão vetar o acesso à Eucaristia, se «o próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos» (§308), que é necessário «integrar todos» (§297) e «valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimónio» (§292)? Os pastores que quisessem recordar os mandamentos da Igreja correriam o risco de agir, segundo a exortação, «como controladores da graça e não como facilitadores» (§310). «Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja ‘para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas’» (§305).

Esta inédita linguagem, ainda mais dura que a dureza de coração que ela recrimina nos «controladores da graça», é o traço distintivo da Amoris laetitia, a qual, não por acaso, na conferência de imprensa de 8 de Abril, o cardeal Schönborn definiu como «um evento linguístico». «A minha maior alegria em relação a este documento», disse o cardeal de Viena, é que ele «constantemente supera a artificial, externa, clara divisão entre regular e irregular». A linguagem, como sempre, exprime um conteúdo. As situações que a exortação pós-sinodal define como «chamadas irregulares» são o adultério público e a coabitação extraconjugal. Para Amoris laetitia, ambos realizam o ideal do matrimónio cristão, embora «de forma parcial e analógica» (§292). «Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja»(§305), «em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos» (nota 351).

De acordo com a moral católica, as circunstâncias que formam o contexto no qual a acção se desenvolve não podem alterar a qualidade moral dos actos, tornando bom e recto o que é intrinsecamente mau. Mas a doutrina dos absolutos morais e do intrinsece malum é frustrada pela Amoris laetitia, que se alinha à «nova moral» condenada por Pio XII em numerosos documentos e por João Paulo II na Veritatis Splendor. A moral de situação deixa às circunstâncias e, em última análise, à consciência subjectiva do homem, a determinação do que é bom e do que é mau. A união sexual extraconjugal não é considerada intrinsecamente ilícita, mas, enquanto acto de amor, sujeita a uma avaliação de acordo  com as circunstâncias. Mas geralmente não há nenhum mal em si, pois não existe pecado grave ou mortal. A equiparação entre pessoas em estado de graça (situações «regulares») e pessoas em estado permanente de pecado (situações «irregulares») não é apenas linguística: parece sucumbir à teoria luterana do homem simul iustus et pecator, condenada pelo decreto sobre a justificação do Concílio de Trento (Denz-H, nn. 1551-1583).

A exortação pós-sinodal Amoris laetitia é muito pior do que o relatório do cardeal Kasper, contra o qual foram justamente lançadas tantas críticas em livros, artigos, e entrevistas. O cardeal Kasper tinha colocado algumas perguntas, a exortação Amoris laetitia oferece a resposta: abre a porta para os divorciados recasados, canoniza a moral de situação e inicia um processo de normalização de todas as coabitações more uxurio [NdT: incluindo a dimensão de intimidade conjugal].

Considerando que o novo documento pertence ao Magistério ordinário não infalível, deve-se desejar que seja objecto de análise crítica aprofundada por parte de teólogos e pastores da Igreja, sem se iludirem com a ideia de que a ele se pode aplicar a «hermenêutica da continuidade».

Se o texto já é catastrófico, mais catastrófico ainda é o facto de que ele foi assinado pelo Vigário de Cristo. Mas para aqueles que amam a Cristo e à sua Igreja, esta é uma boa razão para falar, não para calar. Assim, fazemos nossas as palavras de um bispo corajoso, Dom Athanasius Schneider: «‘Non possumus!’. Não aceitarei um ensinamento ofuscado nem uma abertura habilmente disfarçada da porta dos fundos para que por ela passe uma profanação dos Sacramentos do Matrimónio e da Eucaristia. Da mesma forma, não aceitarei uma burla do Sexto Mandamento de Deus. Prefiro ser ridicularizado e perseguido a ter que aceitar textos ambíguos e métodos insinceros. Prefiro a cristalina ‘imagem de Cristo, a Verdade, à imagem da raposa ornamentada com pedras preciosas’ (Santo Irineu), porque ‘Sei em quem pus a minha confiança’, ‘Scio credidi cui’ (II Tm 1, 12)» («Rorate Coeli», 2 de Novembro de 2015).


[Tradução de Hélio Dias Viana]





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