Temos direito a morrer pacificamente, com o mínimo de dor, e a sociedade
deve proporcionar os meios para isso. Mas teremos o direito de pedir (ou de
exigir) que acabem activamente com a nossa vida?
Ninguém (ou quase ninguém) quer morrer. O que queremos é levar uma vida longa e feliz e todos temos direito a ambicioná-lo! Quando se pensa no final da vida, temos medo. Por muita fé e por muita esperança num depois que tenhamos, a morte, em especial a nossa e a dos nossos, assusta-nos. E a morte em sofrimento físico ainda assusta mais.
Partindo do princípio de que ninguém tem a obrigação de morrer em dor física insuportável, qual deve ser a resposta da sociedade perante a probabilidade de isso acontecer?
Os caminhos são fundamentalmente dois. De um lado, a sociedade pode organizar-se para que cada um tenha o máximo auxílio (médico e não só) para reduzir ao mínimo o sofrimento físico na hora de morrer, mesmo que essa intervenção acabe por ter o efeito colateral de encurtar o tempo de vida. Esta é a resposta de uma sociedade que se preocupa, uma sociedade fraterna. No extremo oposto, a sociedade pode oferecer ao que sofre (ou teme vir a sofrer) um meio para acabar com a sua vida quando entender que é chegada a hora. É a resposta de matriz liberal em que o valor preponderante é o da liberdade do indivíduo: se o suicídio é a escolha daquela pessoa, então temos de respeitar a sua vontade – se a pessoa quer acabar com a sua vida, deve poder fazê-lo e a comunidade não tem nada com isso.
Que caminho colectivo queremos trilhar em Portugal? A resposta a esta questão diz muito sobre a sociedade que queremos ser.
O reflexo humano ancestral perante alguém que se tenta suicidar – normalmente no meio de grande sofrimento emocional, psicológico ou físico – é, e sempre foi, salvar aquela pessoa, fazer o possível por demovê-la, tentar perceber o seu problema e dar a mão. Quantas pessoas conhecemos que quiseram acabar com a vida e que, ajudadas, acabaram por se arrepender e viveram vidas felizes e longas? Se virmos alguém a preparar-se para saltar de uma ponte, se nos cruzarmos com alguém que acabou de ingerir uma dose letal de comprimidos ou que ameaça apontar uma arma à cabeça, o que fazemos? O que achamos que devemos fazer? Deixar andar? Ficarmo-nos por considerar que «se foi isso que esta pessoa decidiu em liberdade, então o problema é dela e não meu»?
Ninguém pode ser obrigado a fazer tratamentos e intervenções que prolonguem artificialmente a vida, aumentando o sofrimento físico às portas da morte. Mas também não é fácil a uma família respeitar a vontade do familiar moribundo e recusar manobras encarniçadas só para tentar mais umas horas de vida. E se essas decisões são difíceis e pouco claras para as famílias, não o são menos para os profissionais de saúde. Os médicos defendem primordialmente a vida e nenhum médico tem o direito de obrigar o seu paciente a viver um pouco mais, se for apenas para morrer em maior sofrimento.
Temos direito a morrer pacificamente, com o mínimo de dor física, e a sociedade tem o dever de proporcionar activamente os meios para isso. Mas teremos o direito de pedir (ou de exigir) que acabem activamente com a nossa vida para acabar com o nosso sofrimento? E será que a sociedade tem o dever de acabar com a vida daqueles que não querem mais viver? Se acharmos que sim, em que condições vamos permiti-lo? Com que cautelas e travões? Para que idades? Com que prazos? Para que casos concretos? Com que hipóteses de voltar atrás se nos arrependermos? Há caminhos que, uma vez abertos, não sabemos até onde nos levam.
O tema é muito fundo e merece uma reflexão séria, feita com tempo, que vá para além dos «soundbites» para a praça pública, que ultrapasse as divisões bons-maus ou esquerda-direita, que se liberte da arengada habitual dos «progressistas» e dos «retrógrados» e, já agora, que a Igreja não seja metida nisto. É uma discussão a que todos somos convocados porque define o que queremos que a nossa sociedade seja: uma sociedade que abdica ou uma sociedade que se dedica?
Professor da Universidade de Coimbra
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