segunda-feira, 15 de julho de 2019

Revolução Francesa – 230 anos depois

Tomada do Palácio das Tulherias.Jean Duplessis-Bertaux (1818). Palácio de Versailles

O ódio a todas as desigualdades levou uma minoria revolucionária
ao terror sanguinário da Revolução Francesa.
O mesmo processo revolucionário prossegue hoje
em todo o mundo,
e o conhecimento dessa revolução paradigmática
ajuda-nos a combatê-lo com eficácia.


Renato William Murta de Vasconcelos

Depois da revolução protestante (1517), uma segunda grande explosão do processo revolucionário,[1] preparada com longa antecedência, desencadeou a partir de 1789 em França uma série de transformações políticas, sociais e religiosas que inauguraram a era contemporânea. No conjunto das suas vertentes moderadas e radicais, difundiu ideias republicanas pelo mundo inteiro, derrubou monarquias milenares na Europa e abriu o caminho para a Revolução Comunista de 1917.

Os elementos mais radicais da Revolução Francesa estavam concentrados na facção jacobina. Segundo a utopia que os guiava, havia sobre os franceses dois jugos insuportáveis: o da superstição, representada pela Religião Católica; e o da tirania, constituída pelo governo monárquico. Com fervor «humanitário», levantaram-se os «amigos do povo» para dissipar as trevas da «superstição» eclesiástica e quebrar os grilhões da «tirania» real. A intenção aparente seria, no final do processo, devolver o poder ao povo, tornando-o seu único detentor. Se algum ingénuo imagina que era essa a intenção, o mínimo que esse mesmo ingénuo pode constatar é que o objectivo real era a evidente tirania que se implantou em todo o mundo.

Catedral de Estrasburgo convertida em «Templo da razão» durante a Revolução Francesa
(Revolutions-Almanach de 1795. Göttingen 1794, p. 327).

A Revolução Francesa, cheia do espírito igualitário que não admite qualquer forma de desigualdade, e encharcada de sensualidade que recusa qualquer freio às paixões, levantou-se contra o Ancien Régime (Antigo Regime), uma ordem social hierárquica e austera em muitos dos seus aspectos. Deixando atrás de si uma montanha de ruínas e um mar de sangue,[2] os revolucionários moderados e radicais derrubaram instituições e costumes milenares, que haviam feito da antiga França o país de todas as perfeições, objecto da admiração do mundo inteiro.

Minoria revolucionária impôs a ideologia anticristã

No Ancien Régime brilhavam ainda, e com muito fulgor, os melhores traços da cultura e do espírito francês: um esplendor na vida social, que bem se exprimia pela tríplice locução verbal «savoir dire, savoir plaire, savoir faire» (saber dizer, saber agradar, saber fazer). Bem vivos e dinâmicos eram também os princípios básicos da civilização cristã — a tradição, a família e a propriedade — dando consistência e elevação ao corpo social. Mas a inveja revolucionária via nessa consistência e nessa elevação uma forma de exploração das classes modestas. Para libertá-las, a solução seria derrubar o altar e o trono: Ni Dieu, ni maître (Nem Deus, nem senhor), segundo a formulação que servirá de base às agitações de Maio de 1968 da Sorbonne.

A democracia instaurada na sequência da Revolução Francesa — o governo do povo pelo povo — contaminou praticamente todas as nações. Mas o resultado evidente é que as transformou em tremendas tiranias das minorias (auto-qualificadas como esclarecidas, avançadas e progressistas) sobre a maioria (pejorativamente rotulada de obtusa, retrógrada e conservadora). E não precisamos ir longe para coleccionar exemplos. Já foi assim na própria fonte dessa revolução, que Augustin Cochin[3] descreve como um movimento realizado por cerca de 200 mil agentes para mudar radicalmente o modo de vida de 25 milhões de franceses. Os revolucionários constituíam 0,8% da população francesa, mas impuseram a sua ideologia anticristã à imensa maioria dos seus compatriotas.

Inauguração dos Estados Gerais – Auguste Couder (1789–1873).
Musée National du Château et des Trianons, Versailles.

O rei reina, mas não governa

Após décadas de preparação tendencial e ideológica, a Revolução Francesa entrou em 1789 na sua fase mais conhecida: a dos factos. Vários factores — um deles, a participação na guerra da independência dos Estados Unidos — haviam contribuído para que o Estado francês se encontrasse deficitário. A Assembleia dos Notáveis do Reino, convocada em 1787, mostrara-se incapaz de oferecer uma proposta adequada para solucionar a crise financeira. O rei Luís XVI convocou então os Estados Gerais, compostos de representantes do clero, da nobreza e do povo. A última vez em que estiveram reunidos fora em 1622, no reinado de Luís XIII. Tinham carácter meramente consultivo, e o Rei nutria a esperança de receber sugestões idóneas que concorressem para sanear a bancarrota do Estado.

Inaugurados nos primeiros dias de Maio de 1789, os Estados Gerais adjudicaram para si um poder que não possuíam, transformando-se logo num corpo único: a Assembleia Nacional; e semanas depois, em Assembleia Nacional Constituinte, numa clara usurpação do poder real. Luís XVI não tinha a personalidade de Luís XIV nem a energia de seu avô Luís XV, e chancelou a redacção de uma Constituição para o Reino, ao invés de dissolver a Assembleia. Ficava posto de lado o objectivo primordial da convocação dos Estados Gerais, e caminhava-se para uma mudança na forma da monarquia francesa: de absoluta para constitucional, onde «o rei reina, mas não governa». Era um primeiro passo rumo à República.

Queda da Bastilha e prisão do governador M. de Launay, 14 de Julho de 1789
– Anónimo. Museu de História da França, Versailles.

Tomada da Bastilha, um marco do horror

Começaram então em Paris os distúrbios e agitações promovidos por hordas de arruaceiros.[4] Em 14 de Julho, há 230 anos, ocorreu a tomada da Bastilha, transformada em símbolo da antiga ordem que devia desaparecer. Nas semanas subsequentes, hordas de bandidos percorreram o interior da França, incendiaram castelos, espalharam medo e terror por toda a parte.

No dia 5 de Outubro, uma turbamulta composta na sua maioria por mulheres saiu de Paris rumo a Versailles, aonde chegou ao cair da noite, enlameada, feroz e armada. Na madrugada seguinte, uma porta aberta na grade do castelo deu-lhes acesso a Versailles. Os guardas foram barbaramente assassinados, e a própria Rainha por pouco não foi executada. Num cortejo macabro, cabeças de soldados foram espetadas em lanças, e a família real foi arrastada para Paris e alojada no Palácio das Tulherias.

Chamada das últimas vítimas do terror na prisão Saint Lazare
– Charles L. Müller (1815–1892).
Museu da Revolução Francesa, Vizille (França).

Beneficiados pela efervescência geral, os deputados mais radicais tomaram a direcção na Assembleia. Primeiramente os monarquistas tradicionais foram suplantados pelos monarquistas constitucionais; estes, por sua vez, foram superados pelos republicanos moderados quando da promulgação da Constituição. Pari passu foi mudando a fisionomia da estrutura social: os privilégios do clero e da nobreza foram abolidos; os bens da Igreja foram nacionalizados; uma Constituição Civil, cismática e herética, foi imposta ao clero.

Clima de terror e radicalização rumo à esquerda

A Assembleia Legislativa sucedeu à Constituinte em 1791. Nela os republicanos radicais — os girondinos, assim chamados porque provinham na sua maioria da região de Gironda, cuja cidade principal era Bordeaux — passaram a dar o tom e exigir a supressão da monarquia.

O ataque ao Palácio das Tulherias no dia 20 de Junho de 1792 preparou o grande assalto de 10 de Agosto. Por ordem do Rei, desejoso de evitar derramamento de sangue, os guardas suíços não reagiram ao ataque de milhares de bandidos, e foram massacrados juntamente com centenas de nobres fiéis.

Indefesa, a família real refugiou-se durante três dias no recinto da Assembleia, de onde foi levada para o Palácio do Templo, pertencente ao Conde de Artois. Luís XVI, Maria Antonieta, os dois filhos — o Delfim (sete anos)[5] e Mme. Royale (14 anos)[6] — e Mme. Elisabeth não foram encarcerados no palácio, como esperavam, mas de início na pequena torre, depois na grande torre adjunta ao palácio.

Nos dias 2 e 3 de Setembro, magotes de jacobinos, com a complacência de Danton, ministro da Justiça, atacaram as prisões e massacraram centenas de nobres encarcerados desde o dia 10 de Agosto. A matança voltou-se também contra membros do clero. Só no Convento do Carmo foram mortos dois bispos e mais de 100 sacerdotes. A Princesa de Lamballe, grande amiga de Maria Antonieta, foi assassinada a golpes de sabres e lanças. Despedaçada cruelmente, o seu coração foi arrancado do peito e comido, ainda palpitante, por um dos assassinos. Depois espetaram a sua cabeça na ponta de um chuço e levaram-na, no meio de um berreiro e com uma farândola infernal, até à janela da prisão do Templo, para que fosse vista pela Rainha.

A populaça aprisiona o rei nas Tulherias em 20 de Junho de 1792

O clima de terror dominava Paris, e justamente no dia da eleição para a Convenção Nacional um elemento psicológico tremendo favoreceu a entrada de grande número de jacobinos radicais na nova câmara. A Convenção Nacional, sucessora da Assembleia Legislativa, abriu as suas sessões no dia 21 de Setembro, aboliu a monarquia e proclamou a república. Foi dirigida nos primeiros meses pelos girondinos, que assumiram os seus assentos à direita (na Legislativa, estavam no lado esquerdo). Em meados do ano seguinte, os jacobinos derrubaram e eliminaram a facção girondina, instalaram-se no poder e inauguraram o assim chamado período do terror. Era o processo de radicalização rumo à esquerda, por meio do qual os radicais de ontem se tornaram os moderados.

Condenação da família real em julgamento ilegal

Deposto o Rei, o que fazer dele? A ala radical jacobina não pretendia enviá-lo para o exílio, mas sim matá-lo com a cumplicidade do centrão formado pelos girondinos. Já no dia 11 de Dezembro, a Convenção dispôs que Luís XVI fosse separado da sua família. O desfecho do processo — um verdadeiro escárnio da justiça — é por demais conhecido. Na madrugada de 18 de Janeiro, 361 dos 720 deputados (a metade mais 1) votaram pela condenação à morte, sem apelo nem sursis. Detalhe horripilante dessa tragédia: o voto decisivo pela morte do Rei foi do Duque de Orleães, seu primo. Bastava ele abster-se, e o Rei estaria salvo.[7] Dois dias depois, ao rufar ensurdecedor dos tambores, a cabeça do Rei rolou no cadafalso, cercado por 15 mil soldados.

A populaça aprisiona a rainha nas Tulherias em 20 de Junho de 1792

Na prisão do Templo permaneceram juntos, durante alguns meses, Maria Antonieta, os seus dois filhos e Mme. Elisabeth. Em fins de Setembro, levaram Maria Antonieta para a prisão da Conciergerie, que era por assim dizer a antecâmara da guilhotina. Após um julgamento infame e infamante,[8] Maria Antonieta foi condenada à morte e guilhotinada no dia 16 de Outubro de 1793.

Enclausurados na torre do Templo, restavam ainda o jovem rei Luís XVII, sua irmã Mme. Royale e Mme. Elisabeth. No meio a todas as incertezas, esta foi para os filhos do Rei uma segunda mãe, executada em 10 de Maio do ano seguinte. Por outro lado, contavam-se vinte anos da morte do seu avô Luís XV.

O martírio de Luís XVI, Maria Antonieta e Mme. Elisabeth era uma verdadeira «queima dos navios» para tornar a Revolução Francesa irreversível, mas atraiu sobre a cabeça dos seus responsáveis imediatos o castigo divino: a máquina revolucionária começou a devorar os seus filhos. Mal decorreram três semanas da execução de Maria Antonieta, subiu ao cadafalso no dia 6 de Novembro de 1793 o regicida Filipe Égalité; em fins de Março de 1794 foi a vez de Hébert, panfletista obsceno e porta-voz dos sans-culottes. Danton seguiu-lhe os passos no dia 5 de Abril. E três meses depois, em 10 de Thermidor (28 de Julho), perderam a cabeça na guilhotina Robespierre, Saint-Just, Dumas e mais uma vintena de seguidores.

A queda de Robespierre sinalizou o término do regime do Terror, pois a opinião pública francesa estava cansada de tantos excessos. Era um retrocesso necessário para a revolução progredir. Outras fases se sucederam: Directório, Consulado, Império. A obra revolucionária prosseguiu inexoravelmente sob outras formas, e continua a avançar. Mas esta já é matéria para outro artigo.

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Notas:

[1] Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 1982, pp. 19-20.

[2] Joseph de Maistre, no seu livro Considérations sur la France, J. B. Pelagaud, Lyon, 1880, calcula que a Revolução Francesa ceifou quatro milhões de vidas humanas, incluindo nesta cifra as vítimas das guerras napoleónicas, que exportaram para toda a Europa os princípios revolucionários de 1789. Só na campanha da Rússia morreram quase um milhão de soldados da Grande Armée.

[3] Augustin Cochin, Les sociétés de pensée et la Démocratie: Études d´Histoire Révolutionnaire, Plon-Nourrit et Cie.,1921.

[4] Esses arruaceiros, segundo Goncourt, eram cerca de seis mil indivíduos da pior espécie, não apenas de Paris, mas provenientes do interior da França e do estrangeiro. Haverá entre eles holandeses, prussianos, espanhóis e até americanos.

[5] Louis-Charles de France (1785-1795) foi o segundo Delfim. Morreu prisioneiro na Torre do Templo, em condições deploráveis. O primeiro, Louis-Joseph, morreu em Junho de 1789.

[6] Mme. Royale, assim era chamada Marie Thérèse Charlotte de Bourbon (1778-1851), filha primogénita de Luís XVI e Maria Antonieta. Sobreviveu à prisão do Templo, casou-se com o seu primo o Duque d´Angoulême e não teve descendência.

[7] Robespierre murmurou espantado, ao ouvir o voto do regicida: «Que infeliz! Era o único que poderia abster-se, e não ousou fazê-lo!» (G. Lenotre, Les grandes heures de la Révolution Française, Perrin, Paris, 1962, p. 278).

[8] Infame sob todos os pontos de vista: da ilegalidade do processo, da competência dos seus juízes, da inexistência de razões e provas suficientes para a condenação. Acusaram-na, à falta de melhor, de haver pervertido sexualmente o seu filho, o Delfim, criança de tenra idade.





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