Adelino Gomes, Público online
Já se aproximavam as
18 horas quando a deputada Teresa Portugal (PS) abriu a última parte da sessão
- aquela em que se iriam conhecer as posições dos representantes partidários
acerca do acordo ortográfico, o tema que mobilizava desde as 10 e meia da manhã
catedráticos, linguistas, editores, membros de institutos e associações da língua
portuguesa, reunidos na sala do Senado da Assembleia da República, em Lisboa.
A deputada começou
por historiar a «atribulada história dos múltiplos acertos e desacertos da
ortografia» da língua portuguesa. Mas em breve não hesitaria em confessar-se
dividida «perante uma argumentação igualmente convincente» que ouvira, ao
início da tarde, quando Vasco Graça Moura e Carlos Reis esgrimiram argumentos
contra e a favor do acordo ortográfico ratificado em 1990, mas que agora voltou
uma vez mais ao Parlamento, como proposta de resolução apresentada pelo
Governo, para resolver um imbróglio jurídico, facilitando a entrada em vigor do
acordo de 1990 desde que pelo menos três dos oito países contratantes depositem
os respectivos instrumentos de ratificação.
As frases-chave dos
dois deputados que se lhe seguiram, do PSD e do CDS-PP, alinharam pelo mesmo
tom: o PSD «manifesta abertura de espírito para valorizar todos os argumentos
aqui ouvidos» (Ana Zita Gomes); «ficámos
a conhecer todos os pontos de vista, nalguns casos, felizmente, antagónicos»
(Pedro Mota Soares, do CDS-PP). As múltiplas interrogações com que o deputado
do PCP, João Oliveira, recheou a sua intervenção («Será este acordo um factor
de cooperação? De que serve um acordo ortográfico sem uma política da língua
portuguesa no mundo?») indiciavam uma mesma reserva em desvendar o sentido de
voto final, apenas revelado, na prática, pelo representante do Bloco de
Esquerda (BE). Este, ficou claro, será de apoio ao acordo. Disse Luís Fazenda: «Respeitamos objecções levantadas por
pessoas com competência técnica [referia-se aos linguistas que se manifestam
contra aspectos do acordo]. Contudo, o que é importante é o sinal político e
esse vai muito para além deste acordo de aproximação ortográfica e é o seguinte:
no conjunto de Estados que se exprimem em português há uma cogestão da língua.»
Graça Moura vs Carlos Reis
O carácter tão
ostensivamente prudencial como os deputados se pronunciaram (alguns insistindo
que falavam a título meramente pessoal) terá talvez a ver com o brilhantismo
dos dois convidados especiais da audição parlamentar - Vasco Graça Moura e o
catedrático de Coimbra e reitor da Universidade Aberta, Carlos Reis. Eurodeputado
do PSD, escritor («esteta da escrita», chamou-lhe Teresa Portugal), Graça Moura
não poupou palavras no ataque ao documento. A começar no título da intervenção
- «Acordo ortográfico: a perspectiva do desastre». E a continuar nas intenções
ocultas que nele descortina - «decerto à revelia das melhores intenções dos
negociadores portugueses, o Acordo (...) serve interesses geopolíticos e
empresariais brasileiros, em detrimento de interesses inalienáveis dos demais
falantes de português no mundo», em especial de Portugal, e representa «uma
lesão inaceitável de um capital simbólico acumulado e de projecção planetária».
Vasco Graça Moura distribuiu pelo documento críticas de carácter jurídico (para
o Acordo vigorar na ordem interna portuguesa não lhe bastam a aprovação
parlamentar e a ratificação do Presidente da República - necessita de «ter
assegurada a sua vigência no ordenamento internacional», algo que está longe de
acontecer pois foi ratificado até agora por três dos oito Estados de língua
portuguesa); de carácter processual (o Governo «não consultou nenhuma
Universidade, nem o Conselho de Reitores, nem a Associação Portuguesa de
Escritores, nem a Sociedade de Língua Portuguesa») e, sobretudo, de carácter
técnico. Os defensores do Acordo, disse, não deram resposta até hoje «a nenhuma
das críticas científicas» formuladas por linguistas. «O único objectivo real de
toda a negociação do Acordo», acusa, foi o de suprimir as consoantes mudas ou
não articuladas «c» e «p», o que levará a «homogeneizar integralmente a grafia
portuguesa com a brasileira (...) desfigurando a escrita, a pronúncia e a
língua que são as nossas».
Carlos Reis avançou
logo com uma «declaração de desinteresses» seguida de outra de interesses: «Não tenho dependências económicas nem
cumplicidades políticas; a minha única preocupação é com a Língua Portuguesa
como idioma dividido por oito países.»
O que está em causa
neste acordo ortográfico, disse, «é
aproximar o modo como escrevemos do modo como falamos (...). Há alguma ofensa
cultural se passo a escrever “elétrico" em vez de "eléctrico"?»,
perguntou, numa rajada de interrogações em que quis saber se Portugal se deve
manter agarrado a uma «concepção conservadora da ortografia»; se serão os interesses
das editoras «absolutamente determinantes para condicionarem decisões de amplo
alcance a alargado espectro cultural»; se «podem alguns portugueses persistir
em encarar o Brasil como um parceiro menor neste processo ou até como um
inimigo»; e se Portugal tem o direito de colocar obstáculos, «as mais das vezes
artificiais ou fundados em interesses económicos, a um entendimento que não
afecta identidades nem legítimas singularidades linguísticas».
Sem comentários:
Enviar um comentário