Pedro Vaz Patto
Muita polémica e
indignação gerou a publicação de um artigo numa revista de ética médica
(Journal of medical ethics), da autoria de Alberto Giubilini e Francesa
Minerva, com o título O aborto pós- natal; porque é que o bebé há-de viver?.
Nele se defende a tese de que é lícito matar um bebé recém-nascido. Não se fala
em infanticídio, mas em aborto pós- natal, porque o bebé recém-nascido, como o
embrião e o feto, não tem o estatuto moral de pessoa. Não basta ser humano para
ter direito a viver. Só tem o estatuto de pessoa e o direito a viver quem é
capaz de atribuir valor à sua existência porque formula objetivos («aims») para
o futuro dessa existência e tem, por isso, interesse em viver. Quem não tem
essa capacidade (como sucede com o recém-nascido, mas já não com alguns animais
não humanos), não sofre qualquer privação ou dano quando morre. Pode um
recém-nascido sofrer um dano quando a morte lhe causa dor. E pode ele ter algum
valor moral quando os pais querem que ele viva. Mas se isso não acontecer, nada
obsta a que se mate um recém-nascido, não só quando ele padeça de alguma
deficiência (o que já sucede na Holanda, onde é, nesse caso, lícita a chamada
eutanásia pós-natal) e a vida possa ser, supostamente, para ele um fardo; mas
também quando ele, por qualquer motivo, represente um fardo, psicológico e
económico, para os pais e a sociedade. Os interesses destes (pessoas actuais)
prevalecem sempre sobre os de quem ainda não é pessoa e só o será
potencialmente. Nas primeiras semanas após o nascimento, a criança não tem
capacidade de ter objectivos («aims») para a sua vida. E mesmo quando, pouco
depois, começa a ter essa capacidade de forma incipiente, esta ainda deve ceder
perante a capacidade que têm os adultos de formular planos desenvolvidos para
as suas próprias vidas. A morte da criança poderá, para os seus pais, ser menos
traumatizante do que a autorização de adopção, porque neste caso a aceitação da
realidade da perda definitiva pode ser mais difícil, pois não há a certeza da
irreversibilidade e permanece a esperança do retorno. Quando assim for, é
preferível matar a criança.
A tese não é
inteiramente inovadora (já havia sido defendida pelos influentes académicos
Michael Tooley e Peter Singer), mas ainda não tinha sido exposta com tanta
crueza, nem levada a consequências que muitos considerarão tão arrepiantes.
Deve reconhecer-se a
coerência da tese: entre o embrião, o feto e o recém- nascido não há uma
diferença de natureza, qualitativa ou substancial. A criança antes e depois do
nascimento não é substancialmente diferente. Estamos apenas perante fases
distintas de um processo de evolução contínuo. Mas isso deve servir para
estender a ilegitimidade do infanticídio à ilegitimidade do aborto, não para
estender a pretensa legitimidade do aborto à pretensa legitimidade de
infanticídio. Até porque também não há saltos de qualidade no processo de
evolução contínuo que vai do nascimento à idade adulta.
A repulsa que
espontaneamente tem causado esta tese (que revela como, apesar de tudo,
permanece viva uma sensibilidade marcada pela cultura judaico-cristã e valores
humanistas) quase dispensaria a tentativa de a refutar no plano racional.
Estamos perante uma tese que é, antes de mais, contra-intuitiva. Mas não deixa
de ser útil proceder a tal refutação.
Em coerência, a tese
levaria ao absurdo de considerar que a perda da vida (como de outros direitos)
não representa um dano para quem não tem consciência do mesmo, por estar
temporariamente inconsciente (a dormir, por exemplo). Os autores do estudo
respondem à objecção dizendo que nestes casos não há uma verdadeira
incapacidade, mas uma simples privação temporária. Só que não se compreende a
relevância dessa diferença. Será diferente ter a possibilidade de readquirir a
consciência umas horas depois (como sucede com quem está a dormir), ou de a vir
a adquirir alguns meses depois (como sucede com um recém-nascido)?
Ao pôr termo à vida
de um feto ou de um recém-nascido não se está a privar estes de um interesse
explícito e actual em viver, mas está-se a impedir (o que não é menos grave)
que eles venham a adquirir esse interesse no futuro, como viriam a adquirir se
não fosse impedido o seu natural desenvolvimento (nenhum de nós estaria hoje
vivo se tivesse sido impedido esse natural desenvolvimento, o que representaria
um inegável dano). A esta objecção, respondem os autores do estudo com um
raciocínio falacioso, que assenta numa petição de princípio: dizem que quem
ainda não tem o estatuto de pessoa (o que está por demonstrar), quem ainda não
existe (o que não é seguramente verdade), não pode sofrer qualquer dano, e, por
isso, os interesses das pessoas actuais prevalecem sempre sobre os interesses
das pessoas potenciais. Mas o embrião, o feto e o recém-nascido, não existem
apenas em potência, são já actuais, embora não tenham ainda actualizadas todas
as suas potencialidades (o que sempre se verifica com a pessoa até à idade
adulta, e até ao fim da vida).
A vida é o maior dos
bens humanos e o primeiro dos direitos humanos, o pressuposto de todos os
outros bens e de todos os outros direitos. Este é um dado objectivo. É assim
mesmo que o seu titular não tenha consciência disso e disso não se aperceba. Se
isso sucede, tal verifica-se porque há alguma debilidade devida à idade (do
embrião, do feto, do recém-nascido, da criança), à doença ou à deficiência em
graus extremos. Não é por causa de uma qualquer incapacidade ou debilidade que
a pessoa perde dignidade, valor moral ou direitos. Pelo contrário, é
precisamente nos casos de maior debilidade ou incapacidade que mais se justifica
eticamente o cuidado dos outros e a tutela da ordem jurídica. Quem mais precisa
de ser defendido é quem não é capaz de se defender por si próprio. É nesses
casos que vale especialmente a advertência evangélica sobre o amor ao «mais
pequeno dos meus irmãos». E também a regra de ouro comum a todas as religiões e
correntes éticas laicas: «não faças aos outros o que não gostarias que te
fizessem a ti» (a ti, que já fostes um feto ou um recém-nascido e a quem
ninguém impediu o natural desenvolvimento). Ou a advertência da nota, publicada
a propósito deste estudo, do Centro de Bioética da Universidade Católica
italiana del Sacro Cuore: «se não formos capazes de tutelar quem não é capaz de
se auto-tutelar poremos fim à própria ideia de democracia tal como a reconstruímos
depois das violências totalitárias».
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