sábado, 3 de março de 2012

Onde para o acento?

Nuno Pacheco, Público






Não estranhem o título. Se não lhe encontram sentido, saibam que, «agora», é assim que se escreve. No tal «bom português» que por aí se vende como sabonetes. Um exemplo recente: na edição dos contos de juventude de John Cheever ( Fall River e outros contos dispersos, Sextante, 2011), a mesma editora que dera à estampa os fulgurantes Contos Completos , em dois volumes e num português decente, cedeu à tentação da novilíngua. E o pobre Cheever é posto a «escrever» frases como esta (Pág. 134): «Oh, para com isso, Charles! - disse a Srª. Dexter, impaciente.» Para com isso... fazer o quê, alguém explica? Cheever não pode, que já morreu. O tradutor também não, porque «é a lei» e ele não tem culpa nenhuma. A editora dirá o mesmo. E, como a vida não «para», temos que aturar isto.

Temos? Não é assim tão certo. A aplicação do acordo tem vindo a fazer-se, não por qualquer lógica ou aprendizagem mas por métodos mecânicos. Escreve-se um texto, enfia-se no Lince e já está. O Lince é uma espécie de Bimby para as letras, só que, em lugar de fazer bons cozinhados, produz péssimas mistelas. Há quem não se importe. O próprio José Saramago, em Junho de 2008, numa entrevista ao programa Diga Lá Excelência (do PÚBLICO, Rádio Renascença e RTP2), dizia: «Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com "c" ou não. Os revisores encarregam-se disso.» Mas aceitava o acordo como uma fatalidade: «Creio que temos de embarcar nesse comboio, mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio.» Haver havia, mas tanto insensato encolher de ombros ajudou a que não houvesse. Agora o negócio não «para», como se vê.
Na sua regular crónica na revista «Atual» (sic) do Expresso , Pedro Mexia, um dos vários que ali (e bem) escrevem «de acordo com a antiga ortografia», veio na edição de 14 de Janeiro defender-se desse epíteto, dizendo que admiti-lo será "como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto «antiga": antiquada, decrépita, morta.»E, a dado passo, também ele assinala «os imparáveis espalhanços de um ‘’pára’’ do verbo »para" que perde o acento e talvez o assento." Já alguém lembrou, ajuizadamente, que a aplicação da nova norma a certas frases daria disparate pela certa. Por exemplo, em lugar de «greve geral pára o país», ficaria «greve geral para o país». Totalmente diferente, não? E como ficaria o título de uma das mais recentes crónicas de Miguel Esteves Cardoso, «Alto e pára o baile»? «Alto e para o baile»? A primeira manda parar de dançar; a segunda apela a que se dance. Que idiota terá sancionado isto?
Talvez todos. Talvez nenhum. O certo é que já se admite que, sim, talvez haja correcções ao acordo, não se sabe quando, mas esta poderá até ser uma delas. E o que sucederá depois, não nos dizem? Venderão os acentos à parte, avulsos, em bolsinhas de plástico, para colarmos nos livros antes assassinados por tamanha displicência? Pedirão desculpa? Indemnizarão os leitores? Serão presos? Nada disso sucederá, porque a estupidez, e não só em Portugal, não é crime. É um modo de vida. E em geral lucrativo.


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