Nuno Serras Pereira
Se há verdade, constantemente ensinada pelos últimos Papas e também pelo Concílio Vaticano II, é a de que a vida, a pessoa humana, é sagrada e inviolável desde o seu início, ou etapa unicelular, até ao seu termo, ou morte natural. Mais, como S. João Paulo II e Bento XVI sublinharam essas pessoas têm exactamente a mesma dignidade, isto é, o mesmo valor eminente e transcendente, que qualquer pessoa já nascida – bebé, criança, adolescente, jovens, adulto ou idoso.
No entanto, verificamos que esta verdade, mesmo ao mais alto nível não foi suficientemente assimilada. De facto, de um modo geral poderá afirmar-se, sem medo de errar, que as pessoas já nascidas gozam de uma dedicação, por parte da Igreja, a todos os níveis, muitíssimo superior à das pessoas concebidas e ainda não nascidas, não obstante a Bem-aventurada Teresa de Calcutá nos ensinar que são estas as mais pobres de entre os pobres e S. João Paulo II asserir que são também as mais vulneráveis, inocentes e indefesas entre todas. E que de entre todos os crimes que se podem cometer contra a vida da pessoa, nenhum é tão perverso e abominável como o do aborto provocado. Creio que o que afirmo ficará demonstrado com um exemplo eloquentíssimo que adiante direi.
Se alguém me dissesse que a Igreja anda obcecada com os já nascidos porque quotidianamente, e até várias vezes no mesmo dia, não cessa de falar neles eu, provavelmente, logo pensaria, independentemente da minha vontade, que esse fulano era um enorme imbecil, claro que imediatamente suplicaria interiormente a Deus que me perdoasse, e responderia a essa pessoa, com aquela frase típica dos jovens em Portugal: «Pá, não estás mesmo a ver o filme».
O Papa Francisco, como é do domínio público, foi à ilha de Lampadosa rezar pelos emigrantes naufragados ao seu largo e pregar contra aquilo a que chamou a «globalização da indiferença»; no dia 3 deste mês, disse e repetiu, num discurso a uma assembleia que comemorava o 50.º aniversário da Pacem in Terris, a propósito de mais um afundamento, nesse mesmo dia, em que pereceram cerca de 300 pessoas, que se tratava de uma vergonha, de uma tragédia, pedindo a oração de todos para que tal desventura não voltasse a suceder; no dia seguinte em Assis, dirigindo-se aos pobres, assistidos pela Caritas, tornou a falar do acontecido em Lampadosa, afirmando, com um rosto muito triste e voz enlutada, que esse era um dia de pranto; hoje, no Angelus Dominical, a propósito da mesma catástrofe, visivelmente comovido, pediu que os fiéis o acompanhassem numa oração silenciosa, convidando-os a que deixassem chorar os seus corações.
Em 23 anos, pereceram, engolidos pelo mar, 8000 (oito mil), números redondos, emigrantes na busca de uma vida melhor, fugindo da miséria e de muitos outros males que os afligem. É com grande consolação pois que vemos e ouvimos o Santo Padre sair em defesa destes sofredores. E intui-se esperançosamente que com a sua dor e a oração de todos venha a pôr termo a estas injustiças, que lançam de qualquer maneira sem garantias de segurança, mar adentro, estas pobres vítimas que as águas tragam vorazmente; ou que pelo menos o estado italiano mobilize todas as forças necessárias para acorrer àquela gente em perigo de vida à vista da costa.
Mas se o Santo Padre assim reage nestas circunstâncias como o faria se os mortos fossem mais de 300 por dia, dois milhões e quinhentos mil em 23 anos? Estes números são indicativos da quantidade de pessoas que são, não de modo indirecto, mas directo e propositado, afogadas no próprio sangue pelo aborto provocado, na Diocese de Roma, da qual o Papa é Bispo, e no resto de Itália. Se quando há pessoas que são submersas nas águas revoltas do abismo marítimo existe um contexto para delas falar, por elas rezar e por elas se mobilizar; por que não o existe igualmente quando há incomparavelmente a serem sufocadas violentamente no próprio sangue?
Quanto a mim, isto constitui uma prova provada do que escrevi no início, a saber, que ainda não assimilámos a verdade, que a recta razão e a Doutrina da Igreja bradam, tentando irromper pelos nossos ouvidos, entupidos em virtude da nossa obstinação e dureza de coração. À honra e glória de Cristo Ámen.
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