domingo, 6 de outubro de 2013

Papa Francisco precisa tomar cuidado
para não ser o Gorbachev da Igreja
e para não competir com a imaginação de Dan Brown


Reinaldo Azevedo

O nome é Jorge Mario Bergoglio, conhecido como Papa Francisco desde 13 de Março de 2013, mas podem começar a chamá-lo de Mikhail Gorbachev… É uma ironia? Claro que é. Alguns entenderam à primeira. Outros terão de reflectir um pouco. Um liderava uma construção humana, de vocação maligna. O outro comanda o que os crentes consideram uma construção divina, de vocação benigna. O meu gracejo, por óbvio, não nasce da diferença, mas do risco da semelhança.

Repararam, leitores? Há muito tempo que um Papa não chamava tanto a atenção da imprensa mundial e não recebia tantos elogios, muito especialmente daqueles, vejam que curioso!, que odeiam a Igreja Católica — e, de maneira mais genérica, o cristianismo. «Se até o Papa está dizendo que a Igreja é essa porcaria, então deve ser mesmo verdade; eu sempre soube!»

Ai daquele que alimentar a vaidade de despertar a simpatia de quem o detesta!

Não gosto, e já deixei isso claro aqui, nos primeiros passos de Francisco. Fazer o quê? Chega a hora em que é preciso discordar até do Papa. Então que seja. Considerei, e não mudei de ideia, um tanto atrapalhada da sua entrevista à revista jesuíta La Civiltà Cattolica. Ainda que não tenha dito a barbaridade que lhe atribuíram sobre o aborto (escrevi um poste sobre a mentira), a linguagem não foi muito clara. Do pastor máximo da Igreja Católica, espera-se, como queria Paulo, que a flauta soe como flauta, e a cítara, como cítara.

Ao jornal «La Repubblica», chamou à Igreja de «introspectiva e vaticanocêntrica», além de classificar a Cúria romana de «lepra do papado». Nesta quarta-feira, na audiência da Praça de São Pedro, lembrou o óbvio, mas num contexto, nesta altura, já contaminado pela tentação do tagarela: «Somos uma igreja de pecadores, e nós, pecadores, somos chamados para nos renovarmos, santificados por Deus». E criticou: «Existiu na história a tentação daqueles que afirmavam que a Igreja é apenas dos puros, daqueles que são totalmente crentes, e os outros são afastados. [A Igreja] não é a casa de poucos, mas de todos».

Certamente que é a «casa de todos», mas de todos que estejam dispostos a aceitar os fundamentos que fazem da Igreja a Igreja. Afinal, o que é realmente de todo mundo é a República, não é isso? É o estado democrático. Não obstante, advirto: é de todos até mesmo para punir aqueles que violam as suas regras.

Alguns amigos católicos estão muito descontentes com a minha pressa em censurar a linguagem do Papa. Acham que eu deveria esperar um pouco mais para ver para onde caminham as coisas. Talvez eu pudesse fazê-lo se fosse apenas católico. Como sou também jornalista, não posso deixar de analisar esta questão com vigilância e, vá lá,  algum método com que observo a situação.

A ironia que fiz com Gorbachev faz sentido. Eu sempre o admirei muito porque tinha a certeza, desde o primeiro momento — e quem me conhece desde aqueles tempos sabe disto — que ele aceleraria o fim da URSS. Gorbachev actuava, vamos dizer assim, no mesmo sentido em que caminhavam os meus anseios naquele tema: o desmoronamento do império soviético. Mas eu divertia-me colocando-me, às vezes, na pele de um comunista pró-Moscou e concluía: é uma besta ao quadrado! «Mas ele não fez um imenso bem à humanidade, pondo fim àquele horror?» Claro que sim! Acontece que ele tinha sido escolhido para manter o império. Vivo torcendo para que apareça um «reformador» chinês, entendem? Deng Xiaoping foi esperto e maligno. Pôs fim ao comunismo chinês sem pôr fim à tirania…

Acontece que a Igreja Católica não é um império do mal, não é? E, desta feita, não vejo graça nos primeiros passos de um candidato a Gorbachev de mitra. Não acho que Francisco vá acabar com a Igreja. Ela é um pouco mais antiga e enraizada na cultura do que era o comunismo. Mas eu vejo-o, por enquanto, produzindo linguagens bombásticas em excesso, a maioria voltada para o público externo, muito em particular para os que vêem na instituição não mais do que um amontoado de obsolescências, com o que, obviamente, não concordo.

Brevemente vai haver gente achando que, nos corredores do Vaticano e na Cúria (a tal «lepra»), circulam alguns daqueles facínoras da imaginação de Dan Brown, o autor do delirante «O Código Da Vinci». Seria melhor que primeiro conhecêssemos o Papa pelas suas acções. As palavras bem que poderiam vir depois. Os jesuítas têm, é verdade, uma certa tradição tagarela, de confronto com a hierarquia, que já gerou maravilhas como o padre Vieira, por exemplo. Mas Bergoglio não é Vieira.

Eis um tipo de consideração, meus caros, que não terá como ser confrontada com os factos de amanhã, depois de amanhã, daqui a dois ou três meses, como acontece com frequência na política. É matéria de muitos anos. As primeiras afirmações de Francisco estão gerando mais calor do que luz. E, como não poderia deixar de ser, têm despertado a simpatia dos que o vêem não como um reformador que vai fortalecer a Igreja Católica, mas como um crítico que, finalmente, pode desestruturá-la.

Boa parte dos não católicos que hoje aprovam Francisco aplaude-o como eu aplaudia… Gorbachev: «Desta vez aquele bloco cai!». E, felizmente, caiu.





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