Walter
Brandmuller, Raymond Burke, Carlo Caffarra, Joachim Meisner
1. Uma premissa necessária
O envio desta carta ao Papa Francisco por parte de quatro cardeais nasce
de uma profunda preocupação pastoral.
Temos observado a desorientação de muitos fiéis, e a confusão em que se
encontram, relativamente a questões de grande importância para a vida da
Igreja. Temos notado também que inclusive no seio do colégio episcopal se fazem
interpretações contrastantes do capítulo oitavo de «Amoris laetitia».
A grande Tradição da Igreja ensina-nos que o caminho para sair de
situações como esta passa pelo recurso ao Santo Padre, pedindo à Sé Apostólica
que resolva as dúvidas que são causa de desorientação e de confusão.
O nosso é, pois, um acto de justiça e de caridade.
De justiça: ao tomar esta iniciativa estamos a professar que o
ministério petrino é o ministério da unidade, e que a Pedro, ao Papa, cabe o
serviço de confirmar na fé.
De caridade: é nossa intenção ajudar o Papa a prevenir divisões e
contraposições na Igreja, pedindo-lhe que dissipe todas as ambiguidades.
Fazendo-o, cumprimos também um estrito dever que nos incumbe. Segundo o
Código de Direito Canónico (câns. 349, 358 e 360), aos cardeais está confiada a
missão de ajudar o Papa na solicitude pela Igreja universal.
O Santo Padre decidiu não responder. Interpretamos esta sua soberana
decisão como um convite para continuar a reflexão e a discussão, de modo sereno
e respeitoso.
Por essa razão, damos agora a conhecer a nossa iniciativa a todo o povo
de Deus, fornecendo para isso toda a documentação pertinente.
Esperamos que ninguém interprete este facto nos termos do esquema
«progressistas-conservadores»; seria um engano. Estamos profundamente preocupados
com o verdadeiro bem das almas, que é a suprema lei da Igreja, e não em fazer
avançar dentro da Igreja um qualquer tipo de política.
Esperamos também que ninguém, julgando injustamente, nos tenha na conta
de adversários do Santo Padre e de pessoas privadas de misericórdia. O que
fizemos e o que estamos a fazer nasce do profundo afecto colegial que nos une
ao Papa, e da preocupação apaixonada pelo bem dos fiéis.
Card.
Walter Brandmüller
Card.
Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
*
2. A carta dos quatro cardeais ao Papa
Ao Santo Padre Francisco
e com conhecimento a Sua Em. Rev. Senhor Cardeal Gerhard L. Müller
Beatíssimo Padre,
No seguimento da publicação da Vossa Exortação Apostólica «Amoris laetitia»,
foram propostas, por parte de teólogos e estudiosos, interpretações não só
divergentes, mas também contrastantes, sobretudo no que respeita ao cap. VIII.
Além do mais, os meios de comunicação têm vindo a pôr em realce esta diatribe,
provocando, desse modo, incerteza, confusão e desorientação por entre muitos
dos fiéis.
Por essa razão, chegaram-nos, a nós que nos subscrevemos, como também a
muitos bispos e presbíteros, numerosos pedidos da parte de fiés pertencentes a
diversas condições sociais, a respeito da correcta interpretação a dar ao cap.
VIII da exortação.
Assim, movidos em consciência pela nossa responsabilidade pastoral, e
desejando praticar sempre melhor aquela mesma sinoladidade a que Vossa
Santidade nos exorta, permitimo-nos, com profundo respeito, vir pedir-Vos,
Santo Padre, que, como Mestre supremo da fé, chamado pelo Ressuscitado a
confirmar os irmãos na fé, dirimais as incertezas e crieis clareza, dando
benevolamente resposta aos «dubia» que nos consentimos juntar à presente.
Apraza a Vossa Santidade abençoar-nos, deixando-Vos a nossa promessa de
uma constante presença na nossa oração.
Card.
Walter Brandmüller
Card.
Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
Roma, 19 de Setembro de 2016.
*
3. Os «dubia»
1. Pergunta-se se, de acordo com quanto se afirma em «Amoris laetitia»,
n.º 300-305, se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da
Penitência, e, portanto, admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando
ligada por vínculo matrimonial válido, convive «more uxorio» com outra, sem que
estejam cumpridas as condições previstas por «Familiaris consortio», n.º 84, e
entretanto confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n.º 34, e por
«Sacramentum caritatis», n.º 29. Pode a expressão «[e]m certos casos», da nota
351 (n.º 305) da exortação «Amoris laetitia», ser aplicada a divorciados com
uma nova união que continuem a viver «more uxorio»?
2. Continua a ser válido, após a exortação pós-sinodal «Amoris
laetitia» (cf. n.º 304), o ensinamento da encíclica de São João Paulo II
«Veritatis splendor», n.º 79, assente na Sagrada Escritura e na Tradição da
Igreja, acerca da existência de normas morais absolutas, válidas sem qualquer
excepção, que proíbem actos intrinsecamente maus?
3. Depois de «Amoris laetitia» n.º 301, pode ainda afirmar-se que
uma pessoa que viva habitualmente em contradição com um mandamento da lei de
Deus, como, por exemplo, aquele que proíbe o adultério (cf. Mt 19, 3-9), se
encontra em situação objectiva de pecado grave habitual (cf. Pontifício
Conselho para os Textos Legislativos, Declaração de 24 de Junho de 2000)?
4. Após as afirmações de «Amoris laetitia», n.º 302, relativas às
«circunstâncias atenuantes da responsabilidade moral», ainda se deve ter como
válido o ensinamento da encíclica de São João Paulo II «Veritatis splendor»,
n.º 81, assente sobre a Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, segundo
o qual: «as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto
intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto 'subjectivamente' honesto
ou defensível como opção»?
5. Depois de «Amoris laetitia», n.º 303, ainda se deve ter como
válido o ensinamento da encíclica de São João Paulo II «Veritatis splendor»,
n.º 56, assente sobre a Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, que
exclui uma interpretação criativa do papel da consciência, e afirma que a
consciência jamais está autorizada a legitimar excepções às normas morais
absolutas que proíbem acções intrinsecamente más pelo próprio objecto?
*
4. Nota explicativa dos quatro cardeais
O CONTEXTO
Os «dubia» (do latim, «dúvidas») são questões formais dirigidas ao Papa
e à Congregação para a Doutrina da Fé, pedindo uma clarificação acerca de temas
particulares relativos à doutrina ou à prática.
O que estes pedidos têm de particular é o facto de serem formulados de
modo a pedirem como resposta um «sim» ou um «não», sem argumentações
teológicas. Não fomos nós a inventar esta modalidade da forma de se dirigir à
Sé Apostólica; é uma prática secular.
Tratemos agora do que está em jogo.
Depois da publicação da exortação apostólica pós-sinodal «Amoris
laetitia», sobre o amor na família, levantou-se um amplo debate, em especial a
respeito do capítulo oitavo. Mais especificamente ainda, os parágrafos 300-305
têm sido objecto de interpretações divergentes.
Para muitos – bispos, párocos, fiéis –, estes parágrafos fazem alusão,
ou ensinam explicitamente, uma mudança da disciplina da Igreja a respeito dos
divorciados que vivem numa nova união, ao passo que outros, admitindo embora a
falta de clareza, ou mesmo a ambiguidade das passagens em questão, argumentam
que estas mesmas páginas podem ser lidas em continuidade com o magistério
precedente e não contêm uma modificação quanto à prática e aos ensinamentos da
Igreja.
Animados por uma preocupação pastoral para com os fiéis, quatro cardeais
enviaram uma carta ao Santo Padre sob a forma de «dubia», esperando assim obter
clareza, dado que a dúvida e a incerteza são sempre em grandíssimo detrimento
do cuidado pastoral.
O facto de que os intérpretes cheguem a diferentes conclusões deve-se
também à existência de vias divergentes a propósito da compreensão da vida
cristã. Nesse sentido, o que está em jogo em «Amoris laetitia» não é somente a
questão de se saber se os divorciados que iniciaram uma nova união – sob certas
circunstâncias – podem ser readmitidos ou não aos sacramentos.
É mais do que isso, já que a interpretação do documento implica maneiras
diferentes e contrastantes de encarar o estilo de vida cristão.
Assim, enquanto a primeira questão dos «dubia» diz respeito a um tema
prático relativo aos divorciados recasados civilmente, as restantes quatro
questões são relativas a temas fundamentais da vida cristã.
AS PERGUNTAS
Dúvida número 1:
Pergunta-se se, de acordo com quanto se afirma em «Amoris laetitia», n.º
300-305, se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da
Penitência, e, portanto, admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando
ligada por vínculo matrimonial válido, convive «more uxorio» com outra, sem que
estejam cumpridas as condições previstas por «Familiaris consortio», n.º 84, e
entretanto confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n.º 34, e por
«Sacramentum caritatis», n.º 29. Pode a expressão «[e]m certos casos», da nota
351 (n.º 305) da exortação «Amoris laetitia», ser aplicada a divorciados com
uma nova união que continuem a viver «more uxorio»?
A primeira pergunta refere-se, em particular, ao n.º 305 de «Amoris
laetitia» e à nota de pé de página 351. A nota 351, pese embora falar
especificamente dos sacramentos da penitência e da comunhão, não menciona,
nesse contexto, os divorciados recasados civilmente, como também não o faz o
texto principal.
O n.º 84 da exortação apostólica «Familiaris consortio», do Papa João
Paulo II, já contemplava a possibilidade de admitir os divorciados recasados
civilmente aos sacramentos. Mencionavam-se aí três condições:
– as pessoas interessadas não podem separar-se sem cometer uma nova
injustiça (poderia acontecer, por exemplo, que fossem responsáveis pela
educação dos próprios filhos);
– os interessados assumem o compromisso de viver de acordo com a verdade
da própria situação, cessando de viver juntos como se fossem marido e mulher
(«more uxorio»), e abstendo-se dos actos próprios dos esposos;
– os interessados evitam dar escândalo (isto é, evitam a aparência do
pecado para evitar o risco de levar os outros a pecar).
As condições indicadas em «Familiaris consortio», n.º 84, e nos
sucessivos documentos acima mencionados mostram-se imediatamente razoáveis,
assim que se recorda que a união conjugal não se baseia apenas na mútua
afeição, e que os actos sexuais não são apenas uma actividade mais entre outras
que o casal possa praticar.
As relações sexuais são para o amor conjugal. São algo de tão
importante, de tão grande bondade e de tão precioso, que requerem um contexto
particular: o contexto do amor conjugal. Por conseguinte, não só os divorciados
que vivem numa nova união se devem abster, mas também qualquer pessoa que não
esteja casada. Para a Igreja, o sexto mandamento, «não cometer adultério»,
sempre abrangeu qualquer exercício da sexualidade que não fosse conjugal, ou
seja, qualquer tipo de acto sexual além do que se tem com o próprio esposo.
Parece que, se fossem admitidos à comunhão os fiéis que iniciaram uma
nova união no âmbito da qual vivem como se fossem marido e mulher, a Igreja
estaria a ensinar, através de tal prática de admissão, uma das seguintes
afirmações a propósito do matrimónio, da sexualidade humana e da natureza dos
sacramentos:
– O divórcio não dissolve o vínculo matrimonial, e os parceiros da nova
união não estão casados. Apesar disso, as pessoas que não estão casadas podem,
em certas condições, realizar legitimamente actos de intimidade sexual.
– O divórcio dissolve o vínculo matrimonial. As pessoas que não estão
casadas não podem realizar legitimamente actos sexuais. Os divorciados
recasados são esposos legitimamente, e os seus actos sexuais são actos
conjugais licitamente.
– O divórcio não dissolve o vínculo matrimonial, e os parceiros da nova
união não estão casados. As pessoas que não estão casadas não podem praticar
actos sexuais. Por isso, os divorciados recasados civilmente vivem numa
situação de pecado habitual, público, objectivo e grave. Todavia, admitir uma
pessoa à Eucaristia não significa para a Igreja aprovar o seu estado de vida
público; o fiel pode abeirar-se da mesa eucarística, mesmo com a consciência de
pecado grave. Para se receber a absolvição no sacramento da penitência não é
sempre necessário o propósito de mudar a própria vida. Por conseguinte, os
sacramentos estão desligados da vida: os ritos cristãos e o culto estão numa
esfera diferente relativamente à da vida moral cristã.
*
Dúvida número 2:
Continua a ser válido, após a exortação pós-sinodal «Amoris laetitia»
(cf. n.º 304), o ensinamento da encíclica de São João Paulo II «Veritatis
splendor», n.º 79, assente na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, acerca
da existência de normas morais absolutas, válidas sem qualquer excepção, que
proíbem actos intrinsecamente maus?
A segunda pergunta diz respeito à existência dos assim chamados actos
intrinsecamente maus. O n.º 79 da encíclica «Veritatis splendor», de João Paulo
II, assevera que é possível «qualificar como moralmente má segundo a sua
espécie […] a escolha deliberada de alguns comportamentos ou actos
determinados, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da
totalidade das consequências previsíveis daquele acto para todas as pessoas
interessadas».
Ensina, pois, a encíclica que há actos que são sempre maus, proibidos
por aquelas normas morais que obrigam sem admitir qualquer excepção («absolutos
morais»). Estes absolutos morais são sempre negativos, isto é, dizem-nos o que
não deveríamos fazer. «Não matar». «Não cometer adultério». Somente as normas
negativas podem obrigar sem qualquer excepção.
De acordo com «Veritatis splendor», no caso dos actos intrinsecamente
maus, não é necessário qualquer discernimento das circunstâncias ou das
intenções. Ainda que um agente secreto pudesse arrancar informações valiosas à
mulher de um terrorista cometendo adultério com ela, tanto que pudesse até
salvar a própria Pátria (isto, que soará a um exemplo saído de um filme de
James Bond, fora já contemplado por São Tomás de Aquino em De Malo, q. 15, a.
1). João Paulo II afirma que a intenção (neste caso, «salvar a Pátria») não
muda a espécie do acto («cometer adultério»), e que é suficiente saber a
espécie do acto («adultério») para se saber que não se deve praticá-lo.
*
Dúvida número 3:
Depois de «Amoris laetitia» n.º 301, pode ainda afirmar-se que uma
pessoa que viva habitualmente em contradição com um mandamento da lei de Deus,
como, por exemplo, aquele que proíbe o adultério (cf. Mt 19, 3-9), se encontra
em situação objectiva de pecado grave habitual (cf. Pontifício Conselho para os
Textos Legislativos, Declaração de 24 de Junho de 2000)?
No parágrafo 301, «Amoris laetitia» recorda que a «Igreja possui uma
sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes», e
conclui que «por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa
situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da
graça santificante».
Com a Declaração de 24 de Junho de 2000, o Pontifício Conselho para os
Textos Legislativos pretendeu clarificar o cânone 915 do Código de Direito
Canónico, que determina que «não sejam admitidos à Sagrada Comunhão» aqueles
que «obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto». A Declaração do
Pontifício Conselho afirma que este cânone é aplicável também aos fiéis
divorciados e recasados civilmente. Esclarece ainda que o «pecado grave» deve
ser entendido objectivamente, dado que o ministro da Eucaristia não tem meios
para julgar da imputabilidade subjectiva da pessoa.
Vemos assim que, para a Declaração, a questão da admissão aos
sacramentos tem que ver com o juízo da situação de vida objectiva da pessoa, e
não com o juízo de que tal pessoa se encontra em estado de pecado mortal. De
facto, subjectivamente poderia não ser plenamente imputável, ou até nem sê-lo
de todo.
Na mesma linha, na sua encíclica «Ecclesia de Eucharistia», n.º 37, São
João Paulo II recorda que, «[t]ratando-se de uma avaliação de consciência,
obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado». Por
conseguinte, a distinção mencionada em «Amoris laetitia», entre a situação
subjectiva de pecado mortal e a situação objectiva de pecado grave, já se
encontrava bem estabelecida no ensinamento da Igreja.
Contudo, João Paulo II continuava, insistindo em que, «em casos de
comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma
moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo
respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa».
Fazendo-o, reafirmava ainda o ensinamento colhido no cânone 915, já mencionado.
Vê-se assim que a questão 3 dos «dubia» pretende que se esclareça se,
mesmo depois de «Amoris laetitia», é ainda possível dizer que as pessoas que
habitualmente vivem em contradição com o mandamento da lei de Deus, vivem em
situação objectiva de grave pecado habitual, mesmo quando, por qualquer razão,
não for certo que elas sejam subjectivamente imputáveis quanto à sua
transgressão habitual.
*
Dúvida número 4:
Após as afirmações de «Amoris laetitia», n.º 302, relativas às
«circunstâncias atenuantes da responsabilidade moral», ainda se deve ter como
válido o ensinamento da encíclica de São João Paulo II «Veritatis splendor»,
n.º 81, assente sobre a Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, segundo
o qual: «as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto
intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto 'subjectivamente' honesto
ou defensível como opção»?
No parágrafo 302, «Amoris laetitia» sublinha que «um juízo negativo
sobre uma situação objectiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a
culpabilidade da pessoa envolvida». Os «dubia» fazem menção do ensinamento –
tal como foi expresso por João Paulo II em «Veritatis splendor» –, segundo o
qual as circunstâncias e as boas intenções jamais podem fazer com que um acto
intrinsecamente mau passe a ser um acto bom ou sequer desculpável.
A questão está em saber se «Amoris laetitia» concorda em dizer que
qualquer acto que transgrida os mandamentos de Deus, como o adultério, o furto,
o perjúrio, consideradas as circunstâncias que mitigam a responsabilidade
pessoal, jamais se pode tornar num acto bom ou sequer desculpável.
Continuam estes actos, a que a Tradição da Igreja chamou de pecados
graves e maus em si, a ser destrutivos e danosos para quem quer que os cometa,
qualquer que seja o estado de responsabilidade moral em que se encontre?
Ou podem estes actos, dependendo do estado subjectivo da pessoa, das
circunstâncias e das intenções, deixar de ser danosos e tornar-se louváveis ou,
pelo menos, desculpáveis?
*
Dúvida número 5:
Depois de «Amoris laetitia», n.º 303, ainda se deve ter como válido o
ensinamento da encíclica de São João Paulo II «Veritatis splendor», n.º 56,
assente sobre a Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, que exclui uma
interpretação criativa do papel da consciência, e afirma que a consciência
jamais está autorizada a legitimar excepções às normas morais absolutas que
proíbem acções intrinsecamente más pelo próprio objecto?
Em «Amoris laetitia», n.º 303, afirma-se que a «consciência pode
reconhecer não só que uma situação não corresponde objectivamente à proposta
geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade,
aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus». Os
«dubia» pedem uma clarificação destas afirmações, por isso que as mesmas são
susceptíveis de interpretações divergentes.
Para os que propõem a ideia de uma consciência criativa, os preceitos da
lei de Deus e a norma da consciência individual podem estar em tensão, ou até
em oposição, ao mesmo tempo que a palavra final sempre deveria caber à
consciência, que decide em última instância acerca do bem e do mal. De acordo
com «Veritatis splendor», n.º 56, «sobre esta base, pretende-se estabelecer a
legitimidade de soluções chamadas ‘pastorais’, contrárias aos ensinamentos do
Magistério, e justificar uma hermenêutica ‘criadora’, segundo a qual a
consciência moral não estaria de modo algum obrigada, em todos os casos, por um
preceito negativo particular».
Segundo esta perspectiva, para a consciência moral, jamais será
suficiente saber que «isto é adultério», «isto é homicídio», para saber se se
trata de algo que não pode e não deve fazer-se.
Em lugar disso, dever-se-ia ainda olhar para as circunstâncias e para as
intenções, a fim de se saber se um tal acto poderia, apesar de tudo, ser
desculpável ou mesmo obrigatório (cf. pergunta 4 dos «dubia»). Para estas
teorias, de facto, a consciência poderia decidir legitimamente que, num certo
caso, a vontade de Deus para mim consiste num acto mediante o qual eu
transgrido um dos seus mandamentos. «Não cometer adultério» passaria a ser
visto como uma norma geral, quando muito. Aqui e agora, vistas as minhas boas
intenções, cometer adultério seria, afinal, o que Deus realmente me está a
pedir. Nesses termos, seria possível pôr-se a hipótese – no mínimo – de casos
de adultério virtuoso, de homicídio legal e de perjúrio obrigatório.
Isto significaria conceber a consciência como uma faculdade para decidir
autonomamente acerca do bem e do mal, e a lei de Deus como um fardo que é
arbitrariamente imposto e que, a dada altura, poderia opor-se à nossa
felicidade.
Sucede, porém, que a consciência não decide do bem e do mal. A ideia de
«decisão em consciência» é enganadora. O acto próprio da consciência é o de
julgar e não o de decidir. Ela diz tão-só «isto é bom», «isto é mau». Essa
bondade ou maldade não dependem dela. O que ela faz é aceitar e reconhecer a
bondade ou a maldade de uma acção, e para isso, ou seja, para julgar, a
consciência necessita de critérios; ela é inteiramente dependente da verdade.
Os mandamentos de Deus são uma ajuda bem-vinda oferecida à consciência
para que colha a verdade e para que, assim, possa julgar segundo a verdade. Os
mandamentos de Deus são uma expressão da verdade sobre o bem, sobre o nosso ser
mais profundo, mostrando algo de crucial acerca de como viver bem.
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