João Miguel Tavares
DN, 17 de Novembro de 2009
O caso «Face Oculta» esbarra de frente com o primeiro-ministro. O País inteiro pára para ver. Vem o Presidente do Supremo Tribunal e diz: «É tempo de repensar toda a estrutura de investigação criminal.» Vem o Procurador-Geral da República e diz: «Os políticos devem acabar com o segredo de justiça ou então mudar a lei.» Sobre o primeiro-ministro, durante uma semana, nenhum deles disse coisa alguma. Meus caros amigos: isto é o mesmo que ter um homem encarcerado num acidente e os dois médicos do INEM chamados ao local optarem por ficar na berma da estrada a discutir questões de anatomia. Isto é o mesmo que ter um avançado caído dentro da área e o árbitro e o fiscal de linha decidirem que naquele momento o que se impõe é uma reflexão sobre as regras do penalti. Isto é o mesmo que ter uma casa a arder e dois bombeiros sentarem-se a debater a qualidade do seu equipamento em vez de irem buscar a mangueira da água.
Está tudo doido? Não. Está tudo cheio de medo. Porque nunca ninguém viu nada assim desde que existe democracia e Noronha do Nascimento e Pinto Monteiro preferiam manifestamente não ter sido eles a ver. Estas são circunstâncias absolutamente excepcionais e eu não sei se temos homens à altura destas circunstâncias. Parece-me muito sintomático que os dois mais altos magistrados do País se tenham refugiado em questões políticas (o segredo de justiça e a estrutura da investigação) no preciso momento em que aquilo que se lhes exige é clareza absoluta nas decisões judiciais. Pinto Monteiro, aliás, só emitiu um comunicado com alguns esclarecimentos depois de José Sócrates ter exigido publicamente que queria ser esclarecido.
Sejamos cristalinos: acreditar que Jesus Cristo andou sobre as águas exige menos fé do que acreditar que as conversas entre Sócrates e Vara têm a inocência de um episódio da Abelha Maia. Supondo que o juiz de instrução criminal de Aveiro não enlouqueceu, o simples facto de enviar certidões para o Supremo envolvendo Sócrates tem só por si um efeito devastador e que exige uma dupla resposta: jurídica (saber se as escutas são legais) mas também política. E, para a resposta política, a legalidade das escutas interessa pouco. Sócrates disse: «A questão mais importante para mim é saber se, durante meses a fio, fui escutado e se isso é legal num Estado de direito.» Mas a questão mais importante para mim, e suponho que para a maioria dos portugueses, não é saber se as escutas são legais, mas se o primeiro-ministro teve conversas inaceitáveis com Armando Vara à luz de um Estado de direito. Isso até devia sossegar Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento. Só que eles conhecem demasiado bem a política para ainda serem capazes de confiar no poder solitário da justiça.
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