Rui Ramos
Há a possibilidade de nacionalizar a obra de
Herberto Helder. Depois desse 11 de Março poético cada nova publicação sua
passaria a ter as tiragens e as reedições decididas pelo Tribunal
Constitucional.
Na segunda-feira passada, como outros aficionados,
esperei o novo livro de Herberto Helder. A Morte Sem Mestre (Porto
Editora), com uma capa a imitar papel de embrulho, trazia um CD onde o autor lê
alguns dos seus poemas. Reconheci a voz de gravações antigas, agora carregada
pela idade.
Eu queria dizer que este é o maior livro publicado
em português em 2014. Mas tenho de falar de outra coisa, porque a pátria tem
agora um problema com Herberto Helder. Explico: A Morte Sem Mestre,
como todas ou quase todas as colecções de versos do autor, terá apenas uma
única edição, com tiragem limitada. É essa a vontade de Herberto
Helder. Por isso, o livro quase que já saiu esgotado.
Ora, a pátria, que durante anos ignorou o «poeta
obscuro», sentiu agora, mal soube que não o pode adquirir quando lhe apetecer,
um direito quase constitucional a dispor de livros de Herberto Helder.
O jornalismo progressista deu logo o devido eco à
indignação. Noutros tempos, poderíamos esperar alguma simpatia por um escritor
que recusa «vender», tal como recusa prémios ou entrevistas. Desta vez, porém,
ninguém se comoveu. O progressismo nacional quer «comprar», e portanto exige
que Herberto Helder «venda». E como não vende, ei-lo acusado de colaborar numa
austeridade poética que prejudica o povo e só beneficia os coleccionadores. Uma
espécie de Alexandre Soares dos Santos da poesia.
Antes que Vasco Lourenço explique que não foi para
isto que fez o 25 de Abril, gostaria de expor à nação um plano para tornar
efectivo o direito de cada cidadão a um exemplar dos livros de Herberto Helder.
E descansem, não passa pela instituição burguesa da encomenda, nem pela acção
fascista de ir cedo à livraria.
A muita gente terá ocorrido a possibilidade de
nacionalizar a obra de Herberto Helder. Depois desse 11 de Março poético, cada
nova publicação sua passaria a ter as tiragens e as reedições decididas pelo
Tribunal Constitucional. É boa ideia, mas tem um senão: Herberto Helder
recusar-se-ia provavelmente a publicar mais livros. Seria então necessário
passar a uma fase superior de controle, com inspeções periódicas da ASAE às
gavetas do poeta, de modo a restituir à nação qualquer verso que ele nos
procurasse sonegar. Ora bem, e se, nessas circunstâncias, Herberto Helder
deixasse de escrever? Restava-nos a coacção. Acontece porém que, devido à
traição do 25 de Novembro, ainda não estamos na Coreia do Norte.
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