terça-feira, 1 de julho de 2014


Conúbio entre poder e direito.

A disputa entre Lotário II e Nicolau I
sobre o matrimónio.

Uma casuística tirada da história. (2)


Cardeal Walter Brandmüller


2. OS ACONTECIMENTOS

É necessário portanto perguntar antes de mais o que tinha acontecido. Antes de assumir o poder, no ano de 855, Lotário II tinha vivido numa relação dita Friedelehe – o termo será explicado de seguida – com uma certa Gualdrada (ou Waldrada), proveniente de uma família aristocrática ignota. Todavia, uma vez tornado rei, contraíu matrimónio formal com a irmã do margravio Uberto de Valles, que detinha o controlo sobre uma região da actual Suiça e era também abade titular de S. Maurice d'Agaune. Esta rainha chamava-se Teutberga (ou Teoberga). Dois anos depois, Lotário separou-se dela e voltou para Gualdrada, da qual provavelmente teve um filho de nome Ugo. Isto suscitou a oposição dos ambiente aristocráticos. Para demonstrar a sua inocência, Teutberga não hesitou em colocar-se sob o juízo de Deus como era costume naquela época.

No seu caso, a ordalia consistiria em extrair um objecto de uma panela cheia de água a ferver (o chamado Kesselfang). Uma vez que as queimaduras da pessoa que em sua vez se submeteu à prova curaram sem qualquer problema – este foi o sinal da sua inocência – ela saíu inocente do juízo divino. Lotário, portanto, pressionado pela sua aristocracia, acolheu novamente Teutberga mas sem prosseguir a comunhão matrimonial, e manteve-a sob rigorosa custódia de prisão. O processo tinha corrido perante um tribunal composto por nobres lotaríngios.

Lotário não aceitou de forma alguma este resultado, contestou a ordalia e arrastou a questão até um sínodo, que se teve em Janeiro de 860 em Aquisgrana. Diante deste sínodo, Lotário afirmou com voz mesta que a mulher tinha a intenção de entrar para o convento, considerando-se indigna do matrimónio com ele. O motivo aduzido para esta decisão foi o de que o rei tinha vindo ao conhecimento do facto de que, antes do matrimónio, Teutberga tinha cometido incesto com o seu irmão Uberto. A própria mulher o tinha confessado aos bispos, os quais, portanto tinham proibido a Lotário de prosseguir em matrimónio.

Durante o sínodo que se realizou em Aquisgrana no seguinte mês de Fevereiro, com um número mais elevado de participantes, Teutberga repetiu a sua confissão, pelo qual foi condenada à penitência pública e mandada para um convento. Mas em tudo isto não foi expresso nenhum juízo acerca da própria validade do matrimónio. Que aquela confissão pudesse corresponder à realidade surge, de facto, como bastante dúbio. Mais depressa se deve presumir que foi feita sob forte pressão da parte de Lotário. Os contemporâneos, pelo menos, estavam convencidos disso mesmo.

Teutberga, entretanto, conseguiu fugir e alcançar o seu irmão Uberto, que se tinha dirigido a Carlos o Calvo no Reino dos Francos ocidentais, para pedir protecção e sustento.

A este ponto interveio Incmaro, figura dominante da Igreja Franca na segunda metade do século IX. Desde 845 arcebispo muito influente de Reims, graças à actividade legislativa e política e, sobretudo, à obra pastoral cheia de zelo, tinha alcançado um papel de guia no meio do episcopado franco. A ocasião para intervir nesta questão matrimonial de Lotário foi-lhe entregue pelos bispos lotaríngios e pelos nobres do Reino, apresentando-lhe uma série de perguntas a respeito, às quais Incmaro respondeu com o escrito De divortio Lotharii et Teutbergae. Esta preciosa obra, cuja edição crítica apareceu pela primeira vez em 1990, é endereçada ao rei da estirpe carolíngia, aos outros bispos e a todos os fiéis, e foi emanada em nome dos bispos sufragâneos da província eclesiástica de Reims. Nessa, o douto canonista explica, apoiando-se na Sagrada Escritura, nos seus exegetas – os Padres – o direito canónico e também civil. A substância das suas explicações é o conceito de que ninguém pode casar de novo, enquanto estiver em vida o seu legítimo consorte. Assim a disputa foi elevada a princípio. Incmaro pediu, portanto um processo contra Lotário por adultério e Teutberga apelou ao Papa.

Vendo-se desta forma em apertos, Lotário reuniu um novo sínodo em Aquisgrana, no final de Abril de 862, novamente constituído só por bispos do seu domínio. Estes consentiram permitir ao rei um novo vínculo matrimonial, uma vez que aquele que existia com Teutberga deveria ser considerado nulo por causa da já referida relação incestuosa. Para este efeito fizeram referência à proibição dos matrimónios incestuosos, sancionada no cânone 30 de Epaone em Borgonha (ca. 517). Obviamente de má fé porque Teutberga mesmo que tivesse tido uma relação incestuosa, certamente não a tinha tido com Lotário.

Parece que no interior do sínodo tivesse existido uma vã oposição contra este mais do que discutível procedimento. De facto, juntamente com este foi transmitida também uma perícia que levava a um juízo oposto. De todos os modos, no final de 862 Lotário casou oficialmente com Gualdrada e fez com que ela fosse coroada rainha.

Chegados a este ponto, intervém o Papa após os múltiplos pedidos de ajuda que Teutberga lhe tinha dirigido. Convocou um sínodo para se realizar em Metz em Junho de 863, sob a presidência de legados pontifícios, para o qual convidou expressamente sobretudo os bispos das francofonias ocidental e oriental. A sua intenção, no entanto, foi tornada vã, uma vez que participaram novamente os bispo lotaríngios. Todavia, as fontes que nos chegaram não permitem traçar um quadro claro dos acontecimentos. De qualquer modo, mais uma vez a decisão foi favorável a Lotário.

Com este resultado, os bispos lotaríngios Tilgaldo de Treveri e Guntero de Colónia deslocaram-se a Roma, certos de conseguir fazer valer, apresentando-se pessoalmente ao Papa, o seu ponto de vista, ou seja, o de Lotário. O facto de Nicolau os ter feito esperar três semanas sem os receber provavelmente desmoronou neles, em parte, a certeza da vitória. No entanto, o Papa convocou um sínodo ao qual Tilgaldo e Guntero foram chamados somente para receber a sua sentença de deposição com excomunhão. As decisões do sínodo de Metz, que Nicolau comparou ao do famigerado confronto de Éfeso, foram cassadas e os seus participantes igualmente destituídos, oferecendo-lhes a possibilidade de pedir a graça, uma vez que foram meros coniventes. Algumas das suas cartas de pedido de desculpa dirigidas a Nicolau I chegaram até nós.

Profundamente indignados, os arcebispos refugiaram-se junto do Imperador Ludovico II, que estava a residir em Benevento, conseguindo convencê-lo a passar para o lado de Lotário. Em Fevereiro de 864 entrou em Roma com o seu exército.

Privo de qualquer protecção militar, Nicolau I mandou fazer jejum e ordenou rogações para implorar a ajuda do Céu. Uma das procissões foi assaltada pelo exército de Ludovico enquanto se dirigia para São Pedro, os participantes foram maltratados, as cruzes foram despedaçadas e as insígnias religiosas rasgadas, mas sobretudo, uma relíquia da Cruz foi lançada na lama. Perante esta aberta violência, o Papa refugiou-se, em segredo, junto do túmulo de São Pedro onde passou dois dias e duas noites em oração, sem água nem alimento.

Entre os romanos cresceu visivelmente a indignação por tudo isto e quando a pessoa que tinha ultrajado a relíquia da Cruz morreu de improviso e o próprio Ludovico foi colhido pela febre, o Imperador foi lesto a mostrar-se conciliador. Graças à mediação da imperatriz Engelberga, realizou-se um colóquio olhos nos olhos entre o Papa e o Imperador, que a partir daquela altura abandonou os dois arcebispos que o tinham enredado na questão e aceitou o juízo do Papa sobre Lotário e o seu matrimónio. Tilgaldo e Guntero aos quais ordenou voltar à Alemanha sem lhes ter levantado a excomunhão, antes de partir para o norte redigiram uma carta de protesto contra Nicolau I, de cuja linguagem altiva emergia que o objectivo deles era criar uma Igreja Nacional independente de Roma. Guntero de Colónia encarregou o seu irmão clérigo Ilduíno de entregar a carta ao Papa ou no caso de este recusar, de a depor sobre a confessio de São Pedro.

E porque foi isto mesmo que aconteceu, Ilduíno, em conjunto com um grupo de homens armados, deslocou-se a São Pedro onde os clérigos da basílica procuraram impedir o seu intento. Desembainharam as espadas, feriram um que caiu por terra, lançaram o libelo sobre a confessio e fugiram da basílica, abrindo caminho à força de armas.

A permanência do Imperador em Roma foi acompanhada de assassinatos, incêndios, assaltos e outras semelhantes atrocidades. Escreve Gregorovius: «No entanto, tal tempestade não quebrou a força de Nicolau. Com a firmeza de um antigo romano, aquele espírito brioso e forte manteve-se de pé. Ameaçou com as flechas da excomunhão e estas foram temidas como verdadeiros raios fulminantes: os bispos da Lotaríngia enviaram as suas declarações penitentes ... o seu legado, com uma das mãos conduziu ao rei que se retraía diante da seta da excomunhão, à consorte repudiada e, com a outra, lhe afastou a amante». Assim a questão foi resolvida, não, de facto, de modo definitivo mas ao menos a princípio.





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